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JOÃO, O BARRAGEIRO



Ele tem 23 anos: “Quando chegar nos 40, pego a aposentadoria. Até lá, não vai faltar barragem”


Domingos Pellegrini


Capacete amarelo, poeira de pedra na cara, botas de borracha. João é barrageiro, “peão” de barragem. Já vendeu sua energia de carpinteiro no Paraná, no Paraguai e no Rio Grande do Sul, para as usinas de Salto Osório, Acaray e Itaúba. Acabou de completar o dia de serviço, tomou banho e agora amassa brilhantina nas mãos. É sábado, dia de farra — mesmo que seja preciso ir gastar o dinheiro na “zona” de Florestópolis ou Iepê, porque em Porecatu não tem.


O alojamento fica no prédio de um antigo seminário. Uma estátua de Nossa Senhora olha no pátio o futebol entre eletricistas, carpinteiros e encanadores. São seis mil e 500 braçais como eles todos trabalhando para a Usina Capivara, que as Centrais Elétricas de São Paulo (CESP) constroem em Paranapanema, a 14 quilômetros de Porecatu.


Rodeado de beliches, João se transforma: fica num pé só, enfia a perna numa calça amarela. Tem 23 anos, e nenhuma amargura, fala sorrindo:

– Nunca vi pronta nenhuma barragem onde trabalhei. Queria ver pelo menos a de Salto Osório, lá deixei muita recordação. De lá saí com dinheiro, foi minha primeira obra. Das outras sempre saí “liso”.


Agora se enfia numa camisa roxa. Adeus, 13 horas de trabalho, capacete fervendo de sol, barulho de caminhões, motoniveladoras, serras, caçambas, betoneiras, martelos, tratores, bulldozers. Até segunda-feira. Vai pegar o bandejão, engolir depressa e rumar para a mulherada.

– Antes que o pessoal todo abaixe por lá. Quando tem muita gente é chato, ficam batendo na porta do quarto, às vezes, a gente tem até que pegar fila.


Separa algumas notas, enfia no bolso, o resto continua no armário com as roupas. O mês tem quatro sábados.

– Teve um tempo que eu ia bem encaminhado, tinha fundo no banco. Aí dei de beber, bebia e queria mulher, e mulher sempre quer dinheiro. Agora nem deixo mais a grana no banco…


Passa o cadeado no armário, pela primeira vez fica sério:

– Não vai pensar que no meio de barrageiro só dá ladrão. A gente tranca as coisas para evitar tentação, sabe como é. Aqui entre nós tem muito mais irmandade do que sacanagem, muito mais. Eu mesmo trabalho em barragem porque acho boa a companheirada. O trabalho mesmo é uma desgraça.


Senta na cama para calçar os sapatões de salto de fivela, continua sério.

– Tem dia que a gente “pega direto", 24 horas de serviço. O normal é dez, mas quase todo mundo acaba fazendo 13, porque hora extra demais não é quando a gente quer. Mas o duro é “pegar direto", trabalhar caindo de sono.

Nesses dias, João leva um maço de chicletes para mastigar contra o sono e espantar acidentes.

– Se o cabra cochilar, acorda no hospital ou no fundo do rio — que o serviço de barragem é perigoso. Muita gente, muita máquina, muito trabalho pendurado. Por exemplo, em Salto Osório, peguei uma boca de comporta pra desformar. Colocamos uns parafusos no paredão de concreto e encaixaram umas tábuas pra gente ficar em cima. Setenta metros de altura, a água correndo embaixo. Se aqueles parafusos desbarrancassem o concreto, eram três “peões” que iam acabar passando no tubulão da água, a mais de 50 quilômetro por hora.


“Serviço de barragem é muito perigoso. Uma vez…”


Continua com o sapato suspenso na mão, lembra de um companheiro perdido em Salto Osório:

– Ele desceu no cabo aéreo, pra tirar uma escada no pilar oito do vertedouro 1. Aquele paredão de concreto, ele descendo no carrinho, só tinha que levar um cabo para enganchar na escada, aí puxavam para cima de novo. Ele tinha um rádio pra falar com o operador do cabo aéreo — mas quando começou a descer, as ondas de rádio se perderam naquele precipício. O operador não ouvia ele pedir pra parar, então ia soltando o cabo do carrinho. Foi descendo, descendo, ele deve ter berrado naquele radinho. Chegou na água. Encontraram o corpo arrebentado uma semana depois.


João está cheiroso e reluzente, vai pegar a janta “nível 2”. Do nível 6 — engenheiros — até o nível 1 dos ajudantes e serventes, há seis tipos de comida e seis padrões de salário. Mas dos sete mil e 500 trabalhadores na usina, seis mil e 500 são braçais — a maioria solteiros com o mesmo pensamento:

– Não tenho nenhum interesse em casar. Pago o INPS [Instituto Nacional de Previdência Social] desde os 16 anos, comecei a trabalhar em serraria. Quando chegar nos 40 e não render mais no serviço, pego aposentadoria. Até lá não vai faltar barragem. Terminou uma, pego meus trens, jogo dentro da mala e vou pra outra. Só não fico onde encontrar comida que nem a de Acaray, sopa de milho e mandioca todo santo dia.


A comida dos níveis 1 e 2 é arroz, feijão, carne e laranja ou banana; de vez em quando alguma novidade surge na bandeja. João acaba de jantar no refeitório lotado, sai com o pão na boca. Passa pelos corredores entre companheiros de calções e toalhas, cheiro de sabonete, rádios de pilha tocando alto. Vai até o porão, uma magote de crianças está esperando: João lhes dá seu pão. Outros “peões" vêm vindo, cada um com um pão. A Usina Capivara vai gerar 640 mil quilowatts para o Norte do Paraná e Sudoeste de São Paulo. João estará em outra.


A CAPITAL DO AÇÚCAR


Os comerciantes de Porecatu também verão partir as multidões de fregueses que fizeram dobrar as vendas a crédito — e o número de “calotes”. Quando a maior empreiteira da obra paga seus seis mil empregados, são seis milhões de cruzeiros que vêm de São Paulo pelos caminhões da Brinks. Muito pouco ficou no salão do barbeiro José Batista e as paredes cheias de gaiolas e trinados.

– Eles não usam muito pra cortar o cabelo. E a usina tem barbeiros lá na obra.


Tem barbeiros, hospital, agências bancárias, Mobral, campos de futebol, bocha, capela, cinema, bar (só refrigerantes, cerveja e vinho), sinuca, alfaiataria, banca de jornais, cercas de arame farpado, 80 guardas armados — e até cadeia, uma casa pequena onde ficam guardados, por exemplo, os que conseguem levar álcool com groselha para os alojamentos. Essa “cidade”, com ruas asfaltadas e enormes gramados, será desmontada. Mas ficarão as casas de alvenaria, como as 651 da “Vila CESP”, ao lado de Porecatu — e para as quais a prefeitura começa a traçar planos.


O prefeito José Jabur senta ao lado da bandeira de Porecatu. Fala com satisfação e — ainda — um pouco de espanto.

– Em janeiro de 1972, a população urbana era de sete mil e 700 pessoas e em janeiro deste ano já era de quase 17 mil. Aprovamos uma média de quase uma planta por dia para novas construções, não se encontra uma casa para alugar e faltam pelo menos 30 salas de aulas na cidade. Ainda bem que água da Sanepar não falta — e em julho teremos 97% da cidade com rede de esgotos sanitários, o que é recorde nacional.


Enquanto espera do Estado sugestões para aproveitamento turístico da represa do município, o prefeito aponta com orgulho a placa na entrada da cidade: Porecatu, Capital do Açúcar.

– Capital estadual do açúcar, prefeito?

– Mundial. Mundial!

 
O Pimentel, jovem advogado, se casou com Ivone Lunardelli. Dona Ivone é filha dono da Usina Central do Paraná, em Porecatu. Era a maior do Paraná e talvez uma das maiores produtoras de açúcar do Brasil. - Wilson Serra
 

DIRETO PARA A DELEGACIA


Um velho armazém de café virou alojamento para mil “peões” que constroem outra usina: a Central do Paraná, que deverá moer 15 mil alqueires de cana, com uma cota anual de seis milhões de sacas de açúcar podendo aumentar. O armazém sem janelas foi dividido em cubículos onde fica fechado um bafo de mofo e suor. Os colchões foram suspensos em tábuas como andaimes. A empreiteira não dá roupa de cama, os colchões estão encardidos.

Os homens também encardidos, vermelhos, uma massa pegajosa de suor e terra cobrindo o corpo. Foram agenciados em São Paulo, muitos vieram em caminhões sem toldo — para encontrar, desde há dois dias, o que mais detestam: falta de água para banho. Estão revoltados:

– Ontem aconteceu a mesma coisa. A gente trabalhou até às dez horas da noite, foi chegar aqui e não ter água. Qual é o futuro de um homem sujo às dez horas da noite?

São massas de músculos que se mexem pesadas, as vozes, na quase escuridão:

– O colchão chega a catingar.

– Sem dinheiro, sem água pra banho, comendo até carne fedendo.

– E quando tem água, depois das dez da noite os guardas fecham o registro.

– De vez em quando algum guarda pega algum e bate como se fosse filho menino dele. Mas com “berro” na cintura até eu sou valente.


Debaixo da lâmpada do corredor, uma pequena fila. Estão de calção, descalços. É a fila do maleiro: as malas ficam guardadas num cubículo com teto — os quartos têm apenas paredes de meia altura.

– E ladrão aqui tá jogando buzo… Os agenciadores lá em São Paulo não escolhem não, vão trazendo o diabo e todo mundo…


Os caminhões, quando chegam, vão direto para a delegacia. Lá todos são revistados e o delegado Juvenal Ferreira da Silva tenta compensar com um sermão a falta de guardas, viaturas e celas. A cadeia de velha alvenaria e forro podre de madeira, está sempre lotada, adultos e menores misturados.

O delegado aponta o quarto do carcereiro:

– Carcereiro aqui dorme de dia. De noite não dá, que esse forro de madeira os presos arrebentam com a mão.


Com dois soldados da Polícia Militar do Paraná (PMP) por dia — “Mas devia ter dez” — o delegado diz que, às vezes, tem que dirigir ele mesmo uma das viaturas. E que, pior que as bebedeiras e os roubos nos alojamentos, são os defloramentos:

– Um caso sério. Com tanto homem numa cidade que já tinha muito homem insatisfeito, só podia dar nisso: no ano passado teve mês com oito defloramentos. São casos difíceis de resolver, é o tipo de ocorrência sem testemunhas, a não ser a própria moça, geralmente menor. Enquanto não houver solução, esses casos tendem a aumentar.


SEU ANTÔNIO É FELIZ


Na usina que vai gerar 640 mil quilowatts, Antônio ganha 640 cruzeiros como servente. Já tem seus 40 anos, sorriso banguela. Está plantando grama ao lado de um grupo de casas “dos engenheiros, sim senhor”.

– Hoje de noite tem cinema na obra, acho que vou. Nunca fui, mas o pessoal diz que aqui, nem nos filmes tem mulher.


Conta que debaixo da ponte, um quilômetro abaixo da barragem, uma dupla de valentes prostitutas se instalou durante semanas ao lado da água corrente.

– Muita gente foi lá. Eu nunca fui, tá louco. Três vezes por semana a Companhia solta uma porção de ônibus pra “zona” de Florestópolis e de Iepê, fui uma vez, gastei quase todo o dinheiro do mês. Porecatu devia ter “zona” aliviava mais a situação.


Digo a ele que para construir um grande grupo de “casas de tolerância” — para tanta demanda — é preciso um grande terreno, que não existe nos arredores da cidade. Os terrenos são de poucos grandes proprietários, que não vendem. Antônio fica pisoteando a placa de grama que deitou no chão, gastando energia:

– Eu por mim não me incomodo, mas a rapaziada nova fica arisca. No dia do pagamento é uma correria, tem até acidente quando um caminhão para, o pessoal despenca um por cima do outro, tá louco. Aí vão pra “zona” volta todo mundo “duro”…

Num boletim mimeografado para prevenção de acidentes a todos, pode-se ler que “o trabalhador feliz é trabalhador produtivo”.

– O senhor é feliz, seu Antônio?

Ele se espanta, sorri, se encabula, fica sério, me encara quase solenemente:

– Sou sim, com a graça de Deus. Fazer o que, né…


Na “Vila CESP”, as mulheres esperam os maridos lavando as calçadas com mangueiras, regando as plantas dos jardins enfileirados. O “short” é uma espécie de uniforme entre elas, tão generalizado quanto o medo de que seus nomes ou fotos saiam no jornal. Uma delas concorda em conversar — "mas não bota meu nome que a Companhia pode não gostar”.


O marido está na barragem, levantou às cinco e meia da madrugada, voltará às sete e meia da noite.

– Chega morto de cansado, cai na cama direto. Ele é sub encarregado de lubrificação de máquinas, nível 3, trabalha até nos domingos. São dois mil veículos na obra…


Casaram na construção de Barra Bonita, depois passaram mais 15 anos mudando de uma barragem para outra e abandonando casas como esta: três quartos, sala-copa, banheiro e cozinha. Sobre a geladeira, garrafas de pinga e cinzano. Como em todas as casas, televisão e sofás forrados de plástico.

– Quando a gente chegou, esta vila era um pasto. Vimos Porecatu ser asfaltada, ficou uma cidade mais limpa.

Ele trabalha uma semana à noite, outra de dia. Ela fica com os cinco filhos, ralhando contra o cabelo no olho de um, a maçã que o caçula não lavou, a televisão que pode acordar o marido.


O filho maior entrará para a Aeronáutica, quando tiver idade, e a família comprará um carro quando sobrar dinheiro:

– É o sonho do meu marido.


Lenço amarelo na cabeça, sandálias havaianas, brinco de bolinha, ela se orgulha de não pagar aluguel, ser nível 3 e ter um marido que ganha “até mais de mil e 500 conforme as horas extras”.

– Quem não gosta desta vida não aguenta um ano, nós aguentamos 15. A gente tem garantia, a Companhia dá assistência médica, dentista, tudo por conta. Todo sábado tem missa no barracão do almoxarifado. Até caminhão pra mudança a Companhia arranja.


Tudo certo, tudo seguro.

– Se a Companhia dispensar meu marido, a gente vai pra Itaipu, barragem não falta. A gente vive num país abençoado por Deus, bem disse o Simonal naquela música.

Só perde o otimismo quando confessa que seu medo é o marido morrer no trabalho:

– Já escapou duas vezes por puro milagre, barragem tem muito acidente. Mas Deus é grande.

No supermercado da Usina Central, a de açúcar, o pessoal de uma das 54 propriedades agrícolas da indústria compra os mantimentos do mês. A mão de obra rural da usina — para cana, aos trabalhadores uma ordem de compra. Com o “cheque” na mão, equivalente a 80% do salário, eles têm um limite a consumir diante das prateleiras abarrotadas.


“Já escapou duas vezes por milagre. Deus é grande."


No pátio, esperando o caminhão para voltar, estão homens, mulheres e crianças amontoados entre os sacos brancos cheios de viveres.


Cheiro de fumo de corda, os homens com a pele áspera e queimada, uma mulher dando de peito ao filho. Cada um que sai do supermercado encosta o carrinho de compras e o esvazia num saco de aniagem. Arroz, feijão, macarrão, vinho, ovos, cigarro, carne.

– Mas carne só hoje mesmo, no dia da compra.

– No resto do tempo é arroz e feijão quase só.


São um negro de olhos vermelhos e um velho de óculos que falam agachados, em tom de conspiração:

– A gente ganha mal e o que ganha fica aqui no supermercado da usina mesmo.

– Logo que puder, me mando daqui. Tenho doença nos rins, não quero morrer aqui.

– Eu, se fosse mais moço, já tinha ido.


Para que não saiam antes da safra, os oito centavos que recebem por feixe de cana cortada não são pagos integralmente. Um centavo sempre fica “de troco” — uma espécie de “caixa” a ser paga só no final da safra.

Nas caixas registradoras, empregados do supermercado examinam os sacos de farinha de trigo: sumiram muitas limas enfiadas neles, antes que o truque fosse percebido.

Num carreador entre canaviais, um homem vem capengando. Corta cana na safra de maio a dezembro, no resto do ano trabalha no café. Não pode participar do plantio da cana: os sulcos são fundos, ele é coxo. E diz que também não é "bom de braço”.

– Corto uns 250 feixes por dia. Tenho três filhos, os dois maiorzinhos ajudam. Então dá pra tirar até 600 contos no mês. Cortador de cana bom, de fazer mil feixes num dia, quase não existe mais.


No seu escritório acanhado, o chefe do setor de mecanização, Cornellius Felikes — um agrônomo holandês — fala um bom português, e saudosamente:

– Há uns dez anos atrás os cortadores de cana ainda eram bons, todo sábado havia competições de corte. Hoje, o pessoal da cana é uma multidão de inválidos, velhos, mulheres e crianças de baixa produtividade.


Para resolver o seu problema, a usina está importando máquinas colhedeiras — “um milhão de cruzeiros mais ou menos cada uma” — que começarão a trabalhar já neste ano. Dos dois mil trabalhadores rurais, poderá dispensar até 50% — além dos operários industriais, que em alguns setores também diminuirão com a automatização industrial da nova usina. São 12 mil pessoas dependentes da usina, trabalhadores e suas famílias, em Porecatu e municípios vizinhos.


José Ferreira de Andrade é cortador típico: nordestino, casado, mulato, analfabeto. Mora numa das casas de madeira de uma das colônias, cercada e com guarda no portão. Sai de casa desconfiado, pergunto quando veio do Nordeste.

– Nordeste que o senhor diz é onde?

– Pernambuco, Maranhão.

– Sou do Sergipe.

– É Nordeste.

– Nunca ouvi falar.

– Já ouviu falar das máquinas de colher cana?

– Não existe máquina de cortar cana. Quando vim do Sergipe corri o Brasil todo de pau de arara, nunca vi nem ouvi falar que máquina cortasse cana.

– Você veio quando pro Sul?

– Em 1958.

Por enquanto só José trabalha na família, mas o primeiro dos dois filhos já está com quatro anos.

– Quando completar seis, vou ver se ele já pega enxada. Senão o ganho não vai dar, moleque que cresce e come mais.


Sua vizinha Maria Brasil, uma pernambucana com sapatos de homem, vem exibir com orgulho os dois filhos cortadores de cana: Antonio, 15 anos, e Mário, 9 anos. A mãe desata a falar:

– Estou com nove filhos, quatro em idade de escola, mas não vão, não. Escola não paga, mas os bichinhos tem que ir de roupa e roupa custa dinheiro.


Aponta o filho maior:

– Esse é chochinho assim de corpo, mas corta cana feito homem, menino. O outro tem ligeireza no braço, mas pouca força. Ganha mixaria, mas já paga a boia dele.


José Ferreira ficou matutando num canto, fala de repente:

– A tal máquina colhedeira não vai aprovar. Ela corta, mas deixa um toco de até dois palmos. Agora me lembro que conversei com um “cabra” que viu uma trabalhando pra experimentar. E a cana mais açucarosa fica nos dois gomos de baixo.

Dona Maria Brasil concorda:

– Não tem o que faça trabalho dum homem direitinho.


Não entendem que, para a usina, não interessa o trabalho direitinho mas a produção rápida e econômica. As colhedeiras trabalharão à noite com seus faróis, cortando, picando, limpando e carregando de 40 a 60 toneladas por hora — e substituindo, cada uma, de 150 a 200 homens por dia.


Dona Maria Brasil e José Ferreira não acreditam que uma máquina possa fazer isso:

– Mas nunca…

Em seguida ficam tentando se desculpar. Não querem ofender ninguém.


É chamada de “Terra Seca”, tem seus 50 anos, veste um chemisier esburacado na barriga e abotoado com alfinetes. Tem dois dentes e pele manteigosa e inchada, as rugas sulcadas de terra, poeira acumulada e curtida em suor. Está na frente do bar da esquina da praça, discursando fantasias:

– Meu filho é barrageiro, me paga pensão e a boia lá é boa. Mas quero sair daqui, que o pessoal aqui segue a lei de São Raimundo: a unha no próximo, o pé no mundo.


Dentro do bar, Angelino Vaccarelli está passando pano no balcão, talvez o mais novo dono de bar na cidade. Foi barrageiro oito anos — Ibitinga, Xavantes e Ilha Solteira —, mas perdeu as fantasias, guardou dinheiro e comprou o bar.

– Economizei desde Ibitinga, aplicando dinheiro e guardando juros. Não fumo, não bebo, não gasto à toa. A maioria dos barrageiros gasta o dinheiro estupidamente, dá pena. Eu, como nunca bebi, nunca fiquei em condições de ser explorado por mulher.


Começou como servente, depois passou por treinamento e conseguiu nível 3: até mil e 700 cruzeiros num mês de muitas horas extras.

– Era duro ver o pessoal “estourando" num dia um dinheiro tão suado. Depois ficam o resto do mês tirando “vales" pra refeições e vendendo pros outros a preço menor. Aí, quando recebem o pagamento com todos os vales descontados, ficam com raiva e tornam a gastar tudo de novo, num dia só…


Lembra de colegas que passavam o mês cheirando calcinhas e sutiãs de mulher que conseguiam roubar.

– Aí, quando o sujeito recebe, vai fazer o que? Beber guaraná?


O ex-eletricista atende crianças que compram doces, volta com olhar de nostalgia:

– Não me arrependo de ter saído, mas, às vezes, dá saudade da companheirada. Barrageiro antigo é tudo gente boa, a gente podia botar a vida na mão do outro a hora que quisesse. Ontem mesmo recebi a carta de um colega da Ilha Solteira dizendo pra eu ir buscar no banco 650 contos que emprestei pra ele quando saí de lá. Barrageiro antigo é gente honesta, essa história de “calotes” que contam por aí, é tudo coisa de barrageiro novo.


Angelino sabe que foi uma exceção entre muitos: seus colegas eletricistas visitam o bar, nenhum tem plano de mudar de vida.

– O bicho parece que não pensa direito. Viver se arriscando, dando o sangue e nunca tendo nada, só umas roupas e um radinho portátil… Acho que conforme o sujeito sobe de nível, vai se conformando. A comida influencia muito. Quando trabalhei na Ilha era nível 2, carne cozida, arroz e feijão com laranja todo dia. Quando passei pra nível 3, vinha sopa todo dia, pão à vontade, verdura, bife e sopa boa. Se eu não conseguir pagar o bar, quem sabe volto a comer naquelas bandejas…


Falou “sopa” como uma palavra preciosa, esticando as sílabas. Agora irá frisar a palavra “injustiça”.

– Mas se tiver que voltar não sei se vou aguentar injustiça de novo, que tem muita. Por exemplo, é proibido ter faca no alojamento. Mas como todo dia tem laranja, muitos arranjam canivete pra descascar no quarto — e é quando os guardas dão “batida” de noite, encontram um canivete dizem que é arma. Aí o “peão” é despedido sem direito nenhum.


Chega o outro ex-barrageiro, entra na conversa, diz que está em litígio com a Companhia para receber o fundo de garantia.

– Tem dia que você não quer fazer hora extra, mas é obrigado, isso enerva muito, acaba dando acidente. Um dia um companheiro meu entrou no serviço e falou “vou quebrar essa jamanta”, de brincadeira. Por coincidência, a máquina acabou quebrando, o encarregado arranjou testemunha e disseram que foi de propósito. O cara foi despedido sem direito nenhum. Ninguém lembrou que para quebrar o diferencial de uma máquina daquelas, nem o sujeito querendo não consegue.


Angelino trabalhou também na conclusão da Ponte Rio-Niterói.

– Foi meu pior serviço, fui para lá emprestado pela Companhia, disseram que era emergência, caso nacional. Faltava um mês pra inauguração e a parte elétrica estava crua, não tinha nada. Então foi uma guerra. Teve muitos dias de trabalhar 24 horas, até cair. Nos últimos dias, o negócio era molhar a cabeça e continuar. Do Carnaval só vi o barulho, não podia sair — e se saísse era só para cair numa cama. Mesmo assim, só deu pra preparar uma iluminação de emergência.


Angelino encerra esta história de grandes construções:

– Aí chegou o dia da inauguração. A gente trabalhou a noite inteira, de manhã evacuaram todo mundo. Às dez horas foi a inauguração, a gente nem viu porque foi dormir um pouco. Ao meio-dia a gente voltou pra continuar até terminar o serviço, os carros já estavam passando. Nunca pude ver aquela ponte iluminada de longe, de noite. Vi em fotografia de revista.

 
"Tinha uma edição especial, com três cadernões grossos, e uma das matérias era sobre as regiões do Paraná. Eu fiz do norte pioneiro. Também fui ver a barragem de Salto Capivara, uma reportagem sobre como viviam os barrageiros. 'A maior ponte do mundo', é baseado nessa conversa com esse barrageiro. O conto faria parte também do livro 'O Homem Vermelho', que estava em preparação." - Domingos Pellegrini
 

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