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O mundo caminha para o caos


Álvaro Godoy (o da esquerda), em suas mulas: 1936


Álvaro Godoy chegou há quase 50 anos. É um pioneiro. Londrina não existia quando ele começou a desmatar, plantar, colher. Fez política, foi contra a criação do Estatuto do Trabalhador Rural, promoveu a Marcha da Produção contra Juscelino. Continua achando que há muita coisa errada.


Domingos Pellegrini Jr.


Eram 92 léguas a cavalo, ida e volta: da Fazenda Santa Helena — perto da futura Londrina — até a comarca de Tibagi. "Quatro dias para ir, atravessando São Roque, hoje Tamarana, passando pela fazenda dos índios, que naquele tempo era enorme, atravessando o Embaú, acampamentos de garimpeiros, o vento frio cortando a cara, a cabeça enrolada num lenço senão aquele vento rachava as orelhas".


Quarenta anos depois, o cavalo foi trocado por uma cadeira de rodas, na varanda onde Álvaro Godoy fica com o Estadão nos joelhos, aparelhagem ortopédica nos pés e um colete fortemente abotoado pela Medicina. Não precisa mais, nem pode, selar o cavalo para ir até Tibagi pagar os impostos da fazenda: Londrina virou município, agora são 20 quilômetros da fazenda até a Prefeitura, sem precisar levar facão para abrir picadas na mata.


Sentado sobre seus 1.500 alqueires, Álvaro Godoy se anima quando fala do passado, do qual conserva uma fatia intacta: 500 alqueires em mata virgem:

E essa, se for preciso, ainda vou defender de carabina na mão.


Choveu, mas a terra do cafezal está seca. Na mata, a terra ainda está molhada, os troncos úmidos; basta sair um metro da estrada e escavar o chão: será sempre a mesma camada grossa de folhas secas, folhas apodrecendo e folhas podres. Nessa camada de húmus, a fertilidade.


Godoy não pode mais visitar sua mata, mas o naturalista Peter Westcott, professor de Ecologia da Universidade de Londrina, está nela duas vezes por semana para pesquisar pássaros. Ele aponta um beija-flor:

— Aqui existem quinze mil espécies, as que vi até agora.


Alguns vivem só no alto das árvores junto com certos tipos de borboletas. Há poças d'água em algumas forquilhas das árvores maiores, e ali vive até um tipo de perereca, entre orquídeas e bromélias.


Álvaro Godoy, o dono de todos os beija-flores, da sua varanda, não tem visão da mata. Mas sabe que os guardas, armados e montados, estão sempre vigiando. E as placas previnem: É proibido tocar na mata. Normalmente são dois ou três guardas, mas em época de caça até cinco.

No escritório já teve tempo de se encontrar onze espingardas apreendidas – informam. E Godoy completa:

—– De vez em quando chega aqui algum caçador que teve espingarda apreendida pelos guardas na mata, vem reclamar comigo — mas pode ser de qualquer posição ou patente, eu digo: vai caçar na Amazônia!


Além dos beija-flores e da mata, Godoy é dono de 500 alqueires de invernada; 250 alqueires com 300 mil cafeeiros; e mais 250 arados para cereais. Para chegar até a casa sede da Fazenda Santa Helena, toma-se a estrada para o distrito de Maravilha — e depois do distrito, à direita, uma alameda pelo meio do cafezal. A casa-sede, construída em 1949, aparece entre o cafezal e um pomar. Na varanda o homem grita para dentro, quer água. O copo vem embaçado de tão gelado, mas ele manda devolver ainda ao congelador:

— Já tomei muita água quente quando tudo isto aqui era mato.

 
"Eu fiz o perfil do Álvaro Godoy, fiz a viagem pro norte pioneiro pra mostrar como é que era as regiões. Tinha uma edição especial, com três cadernões grossos, e uma das matérias era sobre as regiões do Paraná." Domingos Pellegrini Jr
 

Na mata, Westcott já classificou 150 espécies diferentes de pássaros — mas acha que ainda há mais, talvez bem mais:

Oitenta por cento das espécies que identifiquei aqui só existem em matas. Muitas precisam de bastante espaço para seu comportamento vital e por isso não existem nos capões de mato ralo que muitas fazendas têm nas cabeceiras. Isto aqui é uma ilha de vida que pode desaparecer do Norte Novo se cortarem a mata. Outro ambiente igual, intocado, só nas reservas da Companhia Melhoramentos, no Norte Novíssimo.


Quando se embrenha pela periferia da mata, o professor tem que levar — além da máquina fotográfica com teleobjetiva e do gravador especial — uma bússola, porque os passos de um homem sem facão não marcam trilha para retorno. Abrir uma picada a facão o professor não quer, nem poderia. Sempre que aparece na casa-sede, ouve de Godoy:

— Pode pesquisar à vontade. Mas não me destruam nada, não cortem um pau, senão vocês vão pesquisar na Amazônia!


Todo trabalhador na fazenda conhece o mandamento:

Empregado meu que matar um passarinho está despedido!


Westcott acha que Godoy tem razão.

— A ecologia foi desequilibrada de tal maneira com o desmatamento — diz o professor , que mesmo matar um só pássaro pode acelerar uma matança maciça. Ela não tem onças, por exemplo, porque as onças para viver e reproduzir não precisam apenas de mata, precisam de mata muito grande. Cada espécie tem uma necessidade de espaço para liberar seu comportamento. Outro exemplo são as araras.


— Araras? — pergunta Godoy, se exaltando — Araras antigamente a gente via de bandos, as árvores cheias de araras.

E Westcott:

Agora não há mais, nem aqui nem na mata. E as que existem em cativeiro estão condenadas a não ter prole.

 
"A minha primeira pauta tive três meses para fazer. O Domingos, por exemplo, fez uma matéria incrível chamada de “Virgem: enquanto eu viver ninguém mata ela” sobre a mata do godoy. Londrina era uma loucura." Nilson Monteiro
 

O Tempo


Aconteceu que certo Nenê Sobrinho tinha herdado a gleba dos Três Bocas de Nenê Gaspar, seu pai (que a tinha recebido do governo paranaense, como sesmaria, por ter transportado mantimentos para as tropas durante a Guerra do Contestado). Esse Nenê Sobrinho resolveu vender as terras. Em Campinas (SP), Ademaro e Arnaldo, os mais velhos entre os oito irmãos de Godoy, compraram 1.500 alqueires "no mapa", em 1923, e só em 1928 Ademaro viria a ver as terras e abrir uma posse.

Um rancho, um plantiozinho, umas laranjeiras e limoeiros, um caboclo para tomar conta.

Álvaro tinha 13 anos e estudava no Ateneu Paulista, "colégio descendente, onde os alunos levantavam quando os lentes entravam e onde nos exames o estudante era sabatinado por três lentes, que sorteavam um ponto e diziam: fale sobre isso. E quem não falasse estava reprovado".


"Minha mãe falou: meu filho, novo assim, sem experiência, você vai morrer por lá. Mas eu vim, sem nenhum dinheiro."

Ademaro levou notícias da fertilidade da terra e o menino Álvaro não esqueceu. No final de 1930 resolveu que gostava mais "de fazer do que estudar", e por isso avisou a família que vinha colonizar as terras dos Três Bocas.

Minha mãe falou: meu filho, novo assim, sem experiência, você vai morrer por lá. Mas eu vim, sem dinheiro e com muita vontade. Tinha acabado o serviço militar em Jaú — mas pertenço ao 4° Regimento de Infantaria de Quitaúna.


Com a disposição de quem ainda espera ser convocado, acrescenta:

— Inclusive, na minha caderneta de reservista diz que é pra me aposentar lá no primeiro dia de mobilização.


Com 20 anos, Godoy chegaria nos seus alqueires e acamparia debaixo de um pau, até poder erguer um rancho. Londrina nessa época era uns ranchos onde hoje é a Anderson Clayton.


Da tenda ao rancho, e do rancho à primeira casa, de madeira, iria derrubando a mata e plantando café, cereais, colonião, criando bois e porcos — sem saber que um dia perderia tudo. Os próprios irmãos, em 1928, haviam requerido divisão judicial da gleba, através da comarca de Tibagi. Em 1935 os técnicos começaram a medir a gleba (pelas indicações da carta de sesmaria, delimitada pelos três rios e por uma linha seca unindo as cabeceiras de dois deles). Em 1948, terminando o trabalho dos engenheiros, viu-se que a gleba tinha menos do que a extensão vendida a todos os compradores. Então as escrituras mais antigas foram sendo validadas enquanto houvesse terra suficiente. E os Godoy acabaram sem sua parte: antes de Nenê Sobrinho vender as terras, elas já vinham sendo vendidas pela família. Mas no mesmo ano Álvaro Godoy compraria tudo de novo:

A cavalo! Foi a cavalo que fui procurar condomínio por condomínio recuperando tudo até recuperar a fazenda.


Vida


Um pássaro negro voa sobre a estrada.

Não é a primeira vez que vejo este, e não consigo identificar. Aqui ouço cantos que nunca ouvi, fico imaginando como será o pássaro. É preciso muita paciência até que todos caiam nas redes, e nem todos cairão.


As redes usadas por Westcott, de malhas muito finas, são importadas do Japão, para ficar esticadas à espera dos pássaros — ou de animais que as arrebentam de passagem. Têm pacotes, também de malhas, onde os pássaros se aprisionam — embora alguns beija-flores, de pequenos, consigam passar entre as malhas.


Na mata sem araras, há também o consolo dos periquitos, com suas intrincadas variações de cores, e as cinco espécies de papagaios. Westcott serviu a Marinha americana no Camboja e no Vietnã, em 1964 e 1965, sem poder sair da corveta para visitar as matas porque "estavam cheias de vietcongues". Agora pode ver, por exemplo, a fêmea do cuco botar seu ovo em qualquer ninho alheio para ser chocado graciosamente. E ri quando sabe que o chupim, cuja fêmea adota o mesmo comportamento, entrou para a gíria brasileira como sinônimo de aproveitador.


Um tronco de palmito está caído sobre a estrada e o palmito foi arrancado. Pode ter sido gente, podem ter sido os macacos, que gostam muito de palmito e são os animais que mais aparecem ao visitante silencioso. Fazem algazarra nos galhos, depois desaparecem.


Quase sempre invisíveis estão também na mata veados, antas, capivaras, queixadas, pacas, cutias, tatus, jaguatiricas, gatos e cachorros do mato, tamanduás pequenos, quatis, ariranhas, gambás, etc.


Morte


Godoy abre sobre os joelhos uma caixa de velhas fotografias, revê companheiros, começa a lembrar.

O negrinho Zé Benedito estava roçando mato do meu lado, parou pra acender o cigarro, ficou soprando e batendo a binga, a binga lascou uma pedrinha no olho dele. Naquele 1936 o remédio era lavar o olho com água e limão, mas no dia seguinte o olho do negrinho estava inchado, então eu disse: Zé Benedito, nós vamos para um médico ver teu olho em Jataí — e foi um dia de marcha. Lá chegando atravessamos a praça, que era um pastinho no centro do povoado, e batemos na casa do médico. Eu contei a situação e já adiantei que dinheiro não tinha, mas o homem mandou entrar e com uma pinça tirou o pedrisco do olho do negrinho. Negrinho bom aquele, trabalhador. Morreu. A gente pegava na foice e ele emparelhava comigo roçando mato.


— Mas então o médico falou: “voltar hoje o senhor não pode, esse homem precisa descansar”. E eu tornei a adiantar: “doutor, dinheiro não tenho nem pra um quarto de pensão”. Então ele foi para a rua, chamou um homem gordo de camiseta, lembro como se fosse hoje: "Cardoso, arranja um quarto de duas camas aqui para o seu Godoy, depois a gente acerta". Doutor bom aquele. Deve ter morrido. Eu adiantei que pagava o médico e o quarto quando vendesse uma porquinha que estava na engorda. E quando o doutor ia se afastando, lembro como se fosse hoje, virou e disse: "assim o negrinho descansa e o senhor vê amanhã a chegada do primeiro trem em Jataí".


— E foi assim que eu vi o primeiro trem que chegou em Jataí, hoje Jataizinho. De manhã deixei o negrinho dormindo e fui para a estação. Lá estavam o finado mister Thomas, o finado Willie Davis, o finado capitão Eusébio, o finado Carlos de Almeida, que foi o delegado de polícia em Cornélio e depois em Londrina; o finado João Vanderlei, que foi o primeiro presidente da Câmara de Londrina; o finado Gastão de Alencar, que era escrivão do cartório de Jataí. Do trem desceu o finado Manoel Ribas, interventor estadual.

Uma coisa puxa outra e Álvaro Lázaro Godoy, que fincou seu rancho na mata em janeiro de 1931, lembra outra lotação de mortos, pioneiros da cidade: o finado Eugênio Brugin, o finado Alberto Koch, o finado Davi Dequech, o finado Schultz, o finado Severo de Sousa. O fantasma daquele trem persegue a memória de Godoy.

— Dos que lembro sou o único que continua, além do Carlos Strass, fundador do patrimônio Heimtal. Eu só tinha vinte anos quando cheguei aqui, os que morreram já tinham mais. Mas a vida é assim, uma seleção que não para. Londrina foi isso, uma seleção natural de homens, um punhado de gente que não tinha medo de nada porque não tinha nada a perder. Só vieram pra cá os fortes, os decididos. Mas muitos ficaram no meio do caminho, e acho que foi até bom, para não verem esse mundo de hoje…


O caos

Da caixa de papelão ele tira a foto "do primeiro trigo plantado em Londrina, em 1940".

Era um alqueire só, mas deu assim: quase me encobrindo de tão alto, e sem adubo. Foi plantado a mão, batido a mão, e virou farinha num moinho de fubá. Fizemos pão até que a farinha azedou. O importante foi a experiência. Terra é como uma moça solteira — sozinha não produz, a gente precisa trabalhar nela. Desde 1940 eu sabia que essa terra dá trigo.


E só recentemente a região descobriu o trigo como grande cultura:

A gente plantava de tudo, conhecendo cada planta, cada cova, correndo a lavoura todo dia pra ver o crescimento. Hoje não. Hoje inventaram os tais empresários rurais, piores que os "fazendeiros de asfalto" de antigamente. Estes moravam na cidade mas sabiam o que faziam — e os chamados empresários rurais não moram na terra nem sabem coisa alguma. Vão chegando e mandando arar, botar inseticida, herbicida, adubo. Não pensam na terra, não sujam a mão, e estão sempre endividados, correndo atrás de banco.


Orgulha-se de sempre ter mantido "distância de financiamento":

A terra sempre me foi generosa porque trabalhei com dedicação, como homem da terra e não como empresário. Muitas vezes levantei de noite para acudir algum leitão entalado na cerca do chiqueiro, grunhindo. Não era só o lucro que ia salvar, era mais o leitão. Hoje, será que existe fazendeiro que levanta de noite para acudir um leitão? Eles nem moram na terra, eles estão só plantando o deserto.

Godoy tem duas faces, duas vozes: uma branda, outra dura (ficou conhecido mais por esta). Alterna as duas no desabafo:

— Eles entopem a soja de inseticida e herbicida, sem necessidade. O inseticida mata o inseto praguejador e também o inseto inimigo da praga. O passarinho come o inseto e morre. O cachorro come o passarinho e morre. A chuva lava a plantação e a enxurrada empesteada vai matar o peixe no rio. Morte, morte, morte!

No ano passado plantei soja e não coloquei adubo nem inseticida. E deu uma plantação regular, a custo muito menor. Prefiro colher pouco menos, a custo muito menor, do que matar tanto a alto custo. Também não estou mais adubando o café porque os adubos são falsificados, tem até terra no meio. As companhias de adubos ficam ricas, os lavradores colhem menos do que poderiam gastando cada vez mais. O controle da ferrugem faço quando vejo o amarelão pintando nas folhas, nem antes nem depois. Se a gente for consultar agrônomo, ele vai recomendar mais aplicações do que é preciso — porque ganha comissão das fábricas de fungicidas e de pulverizadores. Não dá mais pra confiar em ninguém, não existe mais honestidade, moral, decência, tudo isso ficou no tempo antigo.


"Daqui vejo as secas, cada ano mais compridas. Viajei o mundo inteiro… No Paraná estão plantando um deserto!"

Como um juiz do caos, faz um convite:

— Vão ver nas chamadas fazendas modernas, entupidas de inseticidas e herbicidas, se há tantos passarinhos como aqui. Em tempo de sabiá cantar, a gente aqui em casa nem consegue falar de tanta algazarra. Tenho a impressão de que até os passarinhos me conhecem aqui nesta varanda. Daqui cumprimento os empregados ali na estradinha e que continuam fiéis. Daqui vejo as secas, cada ano mais compridas. De vez em quando ainda dou um pulo até a cidade, vejo os pátios dos colégios, parece estacionamento de automóveis: ali todo mudo deve saber a mais nada. Não existe mais respeito pelas autoridades, nem pela Natureza, nada! Eu viajei o mundo todo, vi o deserto do Saara, ele aumenta de ano para ano. Vi o deserto da Califórnia, de areia preta… no Paraná estão plantando deserto!


O equilíbrio


O professor para e pede silêncio: a dois metros da estrada há um grupo de manakis (da família do uiparu, pequenos pássaros negros).

São todos machos naquele grupo. Ficam assim, pulando de galho em galho e rimando, zumbindo, grasnando. As fêmeas ficam em outra área, distantes. Os machos fazem algazarra, torneio de canto, lutam. Depois de semanas as fêmeas invadem o círculo deles — só um acasalará com todas, os outros ficarão apenas olhando. Esse macho fecundador é escolhido por ser o mais bonito? O mais canoro? Ou porque ganhou as lutas com os outros, e eles o deixam dominar o harém? Ainda não sei.


No chão, um monte de folhas picadas. Abrindo-se com a mão um buraco no topo, descobre-se formigas graúdas, se agitando na serragem. Na base do formigueiro, porém, descobre-se formigas muito miúdas, numa convivência que talvez seja um tipo de simbiose. Há muitos tipos de formigas na mata. Umas vivem em buracos no chão. Quando alguém pisa, sobem rapidamente pela perna, atacam a pessoa na barriga. Outras vivem em árvores, em caixas como abelhas. E há as formigas legionárias, que andam em blocos cercando insetos — e há os pássaros especializados em acompanhar essas legiões para roubar os insetos aprisionados.


A subversão

Álvaro Godoy conserva a barba desde 1931.

Não havia baile nem moça para ver. Algum tempo depois que cheguei fui sorteado para ser jurado em Jataí, e quase faço a barba, mas a esta altura seria cortar um pedaço da minha personalidade — e então só aparei, conservei.

A gente da época não deixou de falar que Godoy escondia na barba a lembrança de algum crime cometido em São Paulo. Ele ri:

— Deixei a barba porque não tinha navalha.


Conservou o nome da mãe para Fazenda Santa Helena, e o nome do pai, João Américo de Godoy, para um prédio que construiu em Londrina. Conservou a casa de madeira onde morava antes de construir a atual, "com uma base de metro e meio de pedra em redor do alicerce, para durar muito". Não conservou os cavalos de raça que montava, mas foi montado que lembra ter ido até a Câmara Municipal, em dias de chuvas e estradas impedidas, para colocar-se como declarado conservador contra os vereadores do Partido Comunista.


Enquanto toma cafezinho "colhido, torrado e moído aqui mesmo na fazenda", lembra que foi vereador "sem querer", de 1947 a 1949, depois de ter sido um dos fundadores da UDN no município, em 1945. Mas, para as eleições de 1947, agrupou-se com dissidentes que não poderiam aceitar os candidatos oficiais do partido para prefeito e lançaram candidato próprio. Como era preciso partido para lançar candidato, declararam-se uma ala do Partido Libertador, do Rio Grande do Sul, e lançaram Hugo Cabral.

— Tivemos que virar uma madrugada para convencer o homem. Ele aceitou desde que pudesse indicar uma lista de candidatos a vereador — e que não recusassem. Fui o primeiro da lista e tive que aceitar.


Godoy não disfarça o orgulho de confessar:

Os 200 meréis de vencimento eu entregava à Santa Casa, e nunca pedi um favor ao prefeito (Hugo Cabral acabou eleito por diferença de 173 votos). E à Câmera nunca pedi nem gasolina pro carro nem capim pro cavalo.


Ficariam famosas na cidade as polêmicas entre o conservador e os comunistas, o homem das leis rígidas e os homens que queriam mudar as leis. Mas Godoy terminaria renunciando por causa de um companheiro de partido.

Ele apresentou um projeto criando uma taxa de conservação de estradas rurais, para ser paga pelos nossos próprios eleitores, pequenos lavradores que, quando a mulher vai parir, às vezes, não tem nem querosene para iluminar o parto. Garanti que se o projeto fosse aprovado eu renunciava. Foi aprovado — e ali mesmo escrevi, assinei e entreguei minha carta de renúncia. Saí por onde tinha entrado e nunca mais voltei. Faz pouco tempo, quando quiseram me entregar o título de Cidadão Honorário de Londrina, tiveram que vir todos os vereadores aqui, a sessão solene foi ali na sala.


Na Câmara, porém, Godoy mal tinha começado sua cruzada anticomunista. A barba, que de negra passou agora a um cinza azulado, se crispa, o queixo amarrado, até soltar a verberação:


Não adiantou discutir com os comunistas na Câmara. Não adiantou botarem depois o Partido Comunista na ilegalidade. Eles continuaram. Tinha um advogadinho que começou a mandar notificações aos fazendeiros: compareça ao meu escritório dia tal, tal hora. O fazendeiro chegava lá, era o caso de algum empregado despedido que pedia indenização, e o advogadinho ameaçava: ou paga, ou vai pra justiça. E o pessoal pagava, eu estranhava aquilo. Disse ao Nelson Maculan, que era presidente da Sociedade Rural, que a gente devia criar um departamento jurídico para nos defender. Me foi dito que pelos estatutos isso era proibido. Eu falei comigo: então crio um estatuto novo. Como para isso era preciso também criar uma entidade, fundei a Associação dos Lavradores do Norte do Paraná.


Godoy agora se entusiasma:

Contratei advogados. Fiz programas de rádio para esclarecer os proprietários de terras. Batalhei, acusei os comunistas que estavam por trás de tanta indenização e tanto processo trabalhista. No fim das contas, já antes de 1964, a gente aqui tinha colocado um para-choque à agitação no meio rural. Mas a associação acabou antes porque o pessoal usava os advogados, ouvia o programa de rádio, mas todas as contas vinham só pra mim.


No entanto, ele conservava a amizade de alguns ”daqueles comunistas":

Outro dia um veio aqui me abraçar, disse que tinha saudade daqueles tempos da Câmara, 1938 de cá, 1938 de lá, o nobre colega é um demagogo, o nobre colega é uma besta… Conservo também alguns colonos na fazenda há mais de 25 anos. Os que começam com reclamação, pago indenização e mando andar. Não dou asas à agitador. Quando leio nos jornais que é preciso criar uma legislação para o boia-fria, digo comigo: esse pessoal não conhece boia-fria, essa gente não presta. Aparecem justo porque ganharam uma legislação, o Estatuto do Trabalhador Rural, e agora pedem para eles outra legislação. É o caos!


(A Fazenda Santa Helena tem normalmente entre 100 e 150 empregados, muitos em casas de alvenaria. Em algumas épocas, como na colheita, chega a usar mais de 200 ou 300 homens — boias-frias.)

 
"Mas Londrina é uma cidade conservadora sim, em muitos aspectos, porque apesar de ter essa ligação com São Paulo metrópole, São Paulo capital, Londrina tem uma ligação mais profunda com a São Paulo do oeste de São Paulo, de onde vieram grande parte dos colonos que fizeram nossa colonização aqui no tempo da cafeicultura. Parte veio do sul de Minas e parte veio do oeste de São Paulo, daí que vem nosso sotaque de “porta”, porque é do sul de São Paulo. Então nós temos essa raiz conservadora que está em muitos de nossos costumes, nós somos meio agro, nós temos aqui uma grande raiz agro, enquanto Curitiba não, Curitiba foi sempre mais ligada no porto e da linha dos tropeiros, mais ligada com transporte." Domingos Pellegrini Jr


"Querem outra legislação para o boia-fria, digo comigo: o pessoal não conhece boia-fria, essa gente não presta."

A riqueza


Longe, ouve-se um tucano. Há quatro espécies na mata e o tipo maior, toco-toco, não existe mais na região. Há também seis espécies de gavião pequeno. Mas ainda há pássaros grandes, como o mot-mot, da mesma ordem dos tucanos, bico menor, cores brilhantes e ninhos feitos em buracos na terra. Há muitos tipos de pica-paus, desde os de quatro dedos de comprimento até os de dois palmos. Mas Westcott tem certeza de que nunca mais haverá gaviões reais como o que viu, numa foto antiga do londrinense Juliani: abatido e com as asas abertas pelos caçadores, um metro e meio de envergadura.


A riqueza vegetal, no entanto, continua inalterada.

A mata é um palmital. Só o palmito que tem ali já serve pra atiçar muito olho grande — diz Godoy.


(Consta que ali há meio milhão de cruzeiros só em palmito. E, além disso, cedro, cabiúna, óleo pardo, cabreúva, peroba, canelão, canelinha, marfim, todas as madeiras nobres ou de tabuamento que a região teve. Há samambaias com xaxins de até dez metros de comprimento. Simbioses: árvores vivendo da seiva de outras, cipós da grossura de troncos. Chegam a sustentar a árvores até depois de morta, até que apodreça em pé.)


Mata maior que esta só a da Companhia Melhoramentos, em Maringá. Há pouco tempo recebi carta do diretor da Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema). Disse que estava entusiasmado em saber que eu pretendia doar a mata, e que instalaria nela uma estação ecológica para "hóspedes e guardas", duas coisas que não gosto. E eu nunca disse que pretendia doar a mata, ainda mais para o governo, que tem aqui no Paraná o Parque Nacional de Iguaçu, onde até caminhão entra para roubar palmito. Se quiserem mata, peça a da Melhoramentos, que comprou aquilo do governo a quinhentos réis o alqueire. Se com guardas particulares já aparecem intrusos, imagine com guardas do governo...


Não confia em ninguém, ninguém lhe garante que vai conservar a mata virgem.

— Na carta, o diretor da Sema diz que as áreas controladas para estações ecológicas são garantidas por decreto presidencial. Mas logo em seguida diz que, no caso de ser dado à mata qualquer outro destino que não seja a preservação e pesquisa, os doadores serão indenizados. Então, que garantia é essa?!


Misérias


No jardim, uma passarela de madeira com corrimão duplo para Godoy exercitar as pernas na varanda, ele mira a passarela e lembra:

Foi há muito tempo. O cavalo escorregou nas quatro patas e baqueamos os dois, a coronha do revólver nas costas… Continuei andando muitos anos, até que a lesão foi calcificando. E há dois anos piorou, fico aqui esperando uma solução da Medicina.


Pedala em bicicleta fixa, toma banhos quentes de imersão, remédios, e fica esperando.

Mas sei que a Medicina ainda não conseguiu curar nem resfriado…


Na parede, a foto colorida de galhos de café carregados.

Quando o café da fazenda dava até duzentas sacas em coco por mil pés, que a terra ainda era nova, fidalga. Não sei quem trouxe as primeiras mudas, mas a riqueza desta região começou com o café. Os pioneiros, na minha lembrança, são o finado Arnoldo Bulle, o finado Mário Palhano, o finado inglês Ian Frazer, e a também finada Companhia de Terras Norte do Paraná, que depois virou a Melhoramentos — e eu.

 
"Londrina, na época, tinha uma produção cafeeira abismal, era um troço de louco e acabou tudo em 1975 com a Geada." Nilson Monteiro
 

Começou a plantar em 1936. Em 1942 perdeu uma lavoura inteira, coberta de flores, quando ia tirar a primeira colheita.

Naquele tempo geava mais, quase todo ano. Por isso, e também porque ainda se sentia os efeitos da crise de 1929 e a cafeicultura ainda era vista como riqueza feita para falir, muita gente tentou e desistiu. Até a Companhia plantou uns pés na sua chácara, também ali onde hoje é a Clayton. Ficou sendo uma espécie de café oficial; ou dava ou não dava a última palavra. E deu.


Então, era gente que chegava de caminhão, de burro, de carroça, procurando terra e perguntando antes de comprar:

Dá café? Era a pergunta mágica. E começou a dar. Com o desmatamento, as estações do ano ficaram mais determinadas, acabou o excesso de chuva que mofava muitas floradas. E Londrina cresceu na cova do café, o Norte do Paraná cresceu na cova do café, e muitos palácios do Brasil cresceram na cova do café do Norte do Paraná.


Agora o café está chegando ao fim de um ciclo de decadência que começou lá pelos 1950. Mesmo com o cansaço da terra, o café ainda seria a maior riqueza do Brasil. Mas um belo dia, ele falha, "havia de baixar uma asa negra nesta região".

Aquele deputadinho gaúcho, do PTB, Fernando Ferrari. Chegou e viu os cafezais, os colonos e os patrões em harmonia, as crianças barrigudinhas, o terço na igrejinha todo domingo. Cada colono plantava, as frutas, sua criação. Explicaram ao deputado que o regime de colonato era tradicional na cafeicultura, desde Minas, desde São Paulo. Mas ele insistiu: que não existia uma legislação trabalhista. E foi pra Câmara, apresentou projeto, foi criado o Estatuto do Trabalhador Rural, os deputados votaram a favor porque não queriam ser "contra o trabalhador". Quanto miséria se cometeu neste país em nome do trabalhador!

 
"É bom pontuarmos o que era Londrina na década de 1970. Londrina sempre foi uma cidade libertária, historicamente palco de lutas sociais muito grandes, de sindicalismo rural forte, porque o campo dependia de uma mão de obra enorme." Nilson Monteiro
 

Godoy não perdoa o Estatuto:

O Ferrari acabou ganhando mais votos dos seus "protegidos" e a cafeicultura ganhou os bóias-frias. Açulados por esses advogadinhos que não sabem escrever nem uma carta, os trabalhadores começaram a ver na lei seus direitos mas esqueceram dos deveres. Queriam era entrar na justiça pra ganhar indenização. Ganharam as favelas das cidades.


E o café foi entrando em decadência, "sempre com a ajuda firme do IBC".

Que continua ajudando até hoje, quando entrega os dólares do confisco cambial para os grandes importadores, enquanto o cafeicultor nacional está com a corda no pescoço. Mas o próprio presidente do IBC, logo depois que assumiu, declarou que não entendia de café. E eu não entendo mais nada!


A herança


Godoy está cansado de falar. Recebe no escritório os visitantes que retornam da mata. Na gaveta da escrivaninha, de onde retira a carta da Sema, um revólver continua fiel. O fotógrafo insiste numa foto atual, Godoy oferece as fotos do passado:

Muito melhores que uma foto atual de quem já emagreceu quinze quilos neste sofrimento.

O fotógrafo insiste ainda: o editor-chefe quer uma foto atual. O velho reacende a velha flama, bate a mão sobre a gaveta aberta:

— Manda seu editor-chefe caçar porco no mato!

A casa é silenciosa. Álvaro Godoy não tem filhos. Seu irmão Olavo, que agora cuida da fazenda, certamente herdará o dilema da mata.

Sei que de repente pode vir uma desapropriação, então vou ter que me plantar lá de carabina, e quem entrar eu mato. A quem doar? Em que entidade é possível confiar? Para quem o valor ecológico fala mais alto que o dinheiro? Não sei. Eu podia cortar a madeira, vender o palmito, fazer dinheiro. Pra quê? Para botar no banco a prazo fixo e depois saber que o banco quebrou? Pra perder o sono? Doar ao governo? O governo que me cobrou em 1974 34 mil cruzeiros de impostos especiais sobre a mata, como "latifúndio improdutivo"? Como vou doar a mata a um governo que lança impostos sobre quem conserva matas? Não sei, não sei.


Folheia uma velha revista Realidade, onde aparece em pé, em fotos coloridas, entrevistado no cafezal, a barba ainda negra. O professor acha-se na obrigação de quebrar o silêncio:

O chamado reflorestamento que fazem no Brasil é nada mais que remadeiramento — de apenas alguns tipos de madeira. Porque a floresta mesmo é irreconstituível em áreas tropicais ou subtropicais. Caindo a mata, muda o clima. Como uma floresta idêntica à antiga surgiria num clima diferente? O valor dessa mata, para a ciência e a preservação das espécies, é incalculável.


— Pra falar bem a verdade, não fiz mais que a obrigação — Godoy comenta. Por lei, todo fazendeiro é obrigado a preservar vinte por cento da área explorada com agricultura ou pecuária. Eu apenas deixei um pouco mais, uns trinta e três por cento. Fiz só mais que a obrigação.


E continua folheando a revista. Ele sabe que o tempo, mais ainda que a mata, é irrecuperável.


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