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Aventuras de mulher



Norma Freire


Essa história foi contada por mulheres. Não sei se os números, datas e informações são absolutamente corretos, com a correção que se exige de um anuário de estatística, nem me preocupei com isso. Mas sei que essa é uma história verdadeira, que não existe na cabeça e nos livros. Ela corre pelas entranhas do Norte do Paraná.


A primeira notícia de mulher que a gente tem quando chega a Londrina é a própria terra que dá. É uma terra vermelha, fértil à primeira vista, que marca a roupa e o corpo, com chuva e com sol. É uma terra de doação, comprada, conquistada, trabalhada pela mão e lei do mais forte. É uma terra de tradição de pioneiro. Nessa terra a mulher se explica pelo homem e se define pelo amor.

 

“A pauta da Norminha era incrível porque a gente ia em todos os lugares. A gente ia na zona, nos botecos, enfim, fazendo um perfil da mulher do norte do Paraná.” - Elvira Alegre

 

Dona Jemilah Dequech, 70 anos, pioneira em Londrina, não sofreu o susto da derrubada das matas virgens de grandes árvores, porque tinha ao lado o seu David. (“Não é que eu não tinha medo. Não tinha é noção. Ao lado do meu David eu era tudo valente, nada me fazia mal”). Mas no dia seguinte à morte do marido, há pouco tempo — ela nem consegue dizer quando foi porque seus olhos se enchem de lágrimas —, as publicações que costumavam receber não chegavam à sua casa. E quando ela telefonou reclamando, a resposta do outro lado do fio foi direta: “Ué, ele morreu, pra que continuar com as assinaturas?” Foi nesse minuto que dona Jemilah viu o susto ao seu lado, passando pertinho, tanto tempo depois. E tanto tempo depois ela reagiu como outras mulheres que ficaram sem marido, tanto tempo antes: “É, mas eu estou viva. Pode mandar que eu pago”. Seu marido, David Dequech, foi fundador e primeiro presidente da Associação Comercial de Londrina.


“Antes, quando meu marido comprou as glebas, não era Londrina. Era patrimônio das Três Bocas. Foi quando os príncipes da Inglaterra vieram para o Brasil. Um deles era o George, acho, que perdeu o trono porque casou com uma mulher desquitada. Eles passaram por Cambará, a gente morava lá e foi ver os príncipes passarem.”


Jemilah tem 24 anos e David 37. Acabaram de casar e estão morando em Cambará. David quer sair da cidade, começar tudo de novo.


“Porque era o tempo do marco, aquela moda alemã, e todo mundo comprava marcos, o David vendeu a companhia de navegação que tinha para comprar também. Daí o marco caiu, os alemães enganaram bem, e ele não quis mais ficar em Cambará. Pra que continuar soldado de onde era rei? “


O ano é 1932, Jemilah está na janela, vendo os homens derrubar a machado às árvores grandes que, na queda, arrastam as pequenas. Tudo é difícil. Carne só uma vez por semana, às custas de boi morto com tiro de espingarda. Estalavam uns tiros fora de hora, ela assustava, mas seu David tranquilizava: mataram um boi, só isso, pra gente ter carne.


A primeira casa comercial de Londrina é aberta. Claro, pelo David. Às vezes Jemilah ia ajudar a atender no balcão aqueles caboclos que passam para o interior conduzindo dez, doze animais carregados. A venda é pequena: um balcão de beber pinga, outro balcãozinho com chita, brim e xadrez, outro com cereais. Dona Jemilah acha que Londrina já começou crescendo: cada dia que passava, era mais caminhão que chegava, carregado de mudanças.


Os filhos, cinco, Jemilah teve com a ajuda de Deus. Para o nascimento do primeiro, David construiu uma casa com 22 cômodos, que abria nos dias de festa e transformava em salão de baile. Há cinco meses dona Jemilah abandonou a casa e mudou para um moderno apartamento. Os filhos acharam melhor, o que é que ela ia fazer sozinha numa casa tão grande? Mas ela não se conforma, naquela casa está guardada sua memória e sua vida.


“Cê sabe que homem é fogo, né? Ainda mais com essa cor morena…”


Em Apucarana, quando se pergunta pela mulher de Benevides Mesquita, um dos fundadores da cidade, a resposta vem logo: qual das duas? Aí você se surpreende: duas? E novamente a resposta: É… Teve época que eram quatro. Quatro fixas, né?


Dona Albertina Maria Mesquita, magra e miúda, fala baixo e cansado. Conta logo que tem mais de duzentos afilhados, espalhados por todo o Paraná. (“Tinha dia de batizar dois, três. A gente era o fundador daqui, né?”). De vez em quando aparece a carta de um afilhado.


Albertina nasceu em Lajeado Bonito, perto de Curitiba, e seus pais se mudaram para Apucaraninha, onde agora é Faxinal. Um patrimoniozinho de nada, ela nem se lembra. Está com 51 anos; casou com 12. Eny, morena, olhos molhados, sorriso chamando afeto, cheia de corpo, nasceu depois de 14 anos de casamento e é a única filha do casal. Para conseguir que Eny nascesse, Albertina teve que fazer quase um ano de tratamento em São Paulo, os médicos diziam que ela tinha útero infantil.


— Meu véio trabalhava na Companhia de Terras há muitos anos. E veio pra aqui, por causa dessa estrada pra Maringá, e depois… cismou que tinha que casar comigo. Eu nem conhecia ele, não levou nem um mês do pedido até o casamento.


Eny dá um aparte rápido: “Que pedido nada, mãe. Ele exigiu”. E depois: “O pai é 25 anos mais velho do que ela”.


Dona Albertina não se perturba:


— Não, ele não exigiu. Quer dizer que… né? Sabe como é que é… As pessoas, quando tem que acontecer, acontece, né?


Primeiro casaram só no católico. Depois de cinco anos, no civil. Não havia nada onde vieram morar: a primeira casa foi a deles (“Apucarana foi aberta pela mão dele, e naquele tempo tudo era flor”). Aliás, não era nem casa, era rancho: de palmito com telha de tabuinha. Não tinha pó nem lama de terra vermelha: era tudo mato. Dona Albertina arrumava a casa e cozinhava pra dez, doze camaradas. Do rancho passaram para uma casa melhor, de madeira e telha que veio de Londrina, em caminhão de puxar tora. O dono da cidade era seu Benevides, mineiro de Diamantina. (Há 5 meses sofreu um derrame, e dona Albertina não arreda o pé do seu lado).


— Você sabe que homem é fogo, né? Ainda mais com essa cor morena assim, é duro. Eu nunca fui assim, uma mulher de ciúmes. Nós lutamos tanto, sofremos tanto, porque não podia só nos gozar, né? Pensava, refletia à noite. Porque vivia minha vida mais assim, sozinha.


Um irmão ficava com ela. Quando soube de outra mulher e quatro filhos, ficou chocada. Depois, acostumou.


Tira o álbum de fotografia, começa a mostrar uma por uma, como se estivesse acariciando um tempo amarelado.


— Essa aqui é minha filhinha adotiva; esse aqui é meu véio; a nossa primeira casinha… olha aí, pintada de verde. Verdinha, cor de esperança que nós pintamos ela; esse é o irmão que vivia comigo; olha meu véio. Ele dizia assim: “cuidado pra onça não te comer”... Esse Benê!


“Eu me joguei e meu pai foi legal. Vai me ajudar”

Assim é a história que elas me contaram e que ajudaram a construir. Mas a história não para. Num quarto de hotel em Londrina, a mala ainda por desfazer em cima de uma cadeira, Beth tenta guardar nos olhos vermelhos e ansiosos a alegria que teima escapar. Como dona Jemilah, que não precisava saber para onde estava indo, porque tinha a mão de seu homem. Beth, 24 anos, encontrou alguém que lhe desse a mão na conquista dos espaços de uma nova geração. Beth quer mudar a história, “partir pra outra” que ainda não sabe qual é. Mas é uma história sendo feita também por amor:


— Olha, foi tudo durante uma viagem em que eu senti que voava junto com os pássaros. Aí, eu olhei pro meu…marido, e ele disse para mim: — tudo por telepatia, sabe? A gente não abria a boca — “É, você sempre marcou, você tem muito medo. Quando a gente ama, a gente acredita na pessoa que a gente ama. Se você acredita em mim, venha comigo nessa viagem”. Daí segurei a mão dele, e mesmo enquanto estava indo, sentia que eu me perdia, que ia cair. Ele tentava me segurar. Até que senti que ele realmente gostava de mim. Então senti que não importava, nem que eu estivesse em outro mundo, que estando com ele estava tudo bem. Teve uma hora que tive medo, de não ter mais para onde voltar, e… ele me disse, só sentindo nas sensações do corpo, que me amava, e que se a gente não voltasse não tinha importância, a gente estava junto. Achei que estava ouvindo alguma coisa muito velha, de um jeito muito novo. E foi aí que a gente resolveu casar… Juntar os trapos, partir para outra.

— Não posso dizer que me encontrei, de jeito nenhum, mas é sensacional a alegria que estou sentindo. Resolvi que tinha que fazer alguma coisa por mim. Pelo menos tinha que tentar. Porque as coisas sempre tinham sido impostas. Eu tendo que fazer tudo para agradar uma porção de pessoas. Estava me sentindo horrível por dentro, sem nada pra dar. Como é que podiam exigir de mim um amor que eu não tive a chance de aprender, não é mesmo? Então resolvi me jogar. Tá custando muito, e vai custar, eu sei. Mas a vida é uma só, ninguém tem o direito de jogar ela fora.

— Eu me joguei, e o meu pai foi legal comigo. Ele vai me ajudar financeiramente até quando eu precisar, mas sempre tem que contar um mundo de história pra receber esse dinheiro. Estou querendo encontrar alguma coisa pra fazer que me ajude a sobreviver. Faculdade? Larguei a de Psicologia. Os caras não tão com nada.

Podemos garantir que a mulher que vive no Norte do Paraná, no cinturão de cidades entre Londrina e Maringá, é formada de cabeça, tronco e membros. Especialmente dois braços fortes… Ela também é preta, branca e amarela, rica e pobre, alta, baixa, magra e gorda. Velha e moça. Muito velha e muito moça. Ela lê Capricho e Bíblia.


Comidinha de barro aos 3 aninhos, aos 13 a primeira festinha, casamento pelos 18, então cuidar da família, tanta história pra contar aos 60


Roseli, 3 anos


Antes de ser mulher, a mulher é menina. Assim também no Norte do Paraná. Menina brinca de ciranda, casinha, comidinha e boneca; menina do Paraná faz comidinha com bolotas de barro vermelho e essa é sua primeira escola. Roseli e sua irmã Angela, 8, são filhas de Francisca Pereira, 30, que passou um creme de alisar no cabelo, e o cabelo sapecou e ficou cor de cenoura na frente. Roseli não larga a saia da mãe, um vestido de antes do casamento, desbotado e rasgado aqui e ali, por cima de uma calça comprida larga. Francisca está fofando barro com a enxada, para plantar umas coisinhas: cebola, salsa e flor. Francisca gosta muito de flor.


As meninas ajudam a mãe com as mãos.


Francisca também gosta de fazer pão, no forno de barro de uma casa pobre de madeira em Aricanduva. Duas famílias dividem os quatro cômodos. O pai de Angela e Roseli trabalha na Nortox, fábrica de inseticida e veneno, segundo Francisca. Quando a mãe vai fazer pão, as meninas também botam seus pãezinhos para cozinhar, feitos de barro ou resto de massa. Angela está no terceiro ano da escola e Francisca diz que ela vai poder namorar, depois de certa idade. Enquanto é novinha não vai andar à toa não, tem que ajudar a mãe primeiro, pra depois saber como é o negócio.


Roseli não é menina difícil, mas dá mais problema: sempre dor de garganta e tem que ser levada às pressas para Apucarana porque em Aricanduva não tem médico. Uma vez por semana Angela e Roseli fazem uma festinha, a mãe deixa e se vestem e cozinham comidinhas do jeito que entenderem.


Uma vez, Angela enfeitou todo o cabelo loiro e mal tratado de Roseli com flores do jardim. Ela mesma calçou o sapato de salto da mãe e enrolou um pano velho no corpo, do jeito que parecesse uma saia comprida. Francisca não deixa as meninas brincarem em outras casas, com outras meninas, pra não pegar mau costume.


As meninas só saem para ir à escola ou à igreja.


Márcia, 7 anos


A filha da vereadora Irondi Mantovani Pugliesi, de Arapongas, sabe atender telefone, vai à escola, corre, brinca e pula em casa. Gosta de desenhar, umas figuras engraçadas perto de uma casinha. Márcia é desinibida e conversadeira. (“Eu educo minhas filhas de maneira bem real, minha maneira de criar filhos é mostrando a realidade. Não iludo, mostro todos os problemas da vida, que sempre a criança pergunta. Agora, eu acho que liberdade exagerada, não. Vamos dizer assim, não sou dessa maneira muito moderna de criar os filhos, sou assim… normal, o que eu acho normal.”


Luzia, 8 anos


Mas no Norte do Paraná, menina às vezes quebra o braço, subindo no pé de manga. Luzia Ferreira Martins mora em Marialva. Filha de pai carregador e mãe que faz serviço em casa. Ela é a mais nova de três irmãs, e a história do braço quebrado foi assim: ela viu a manga no pé de manga do quintal. Quis muito chupar manga e subiu na árvore com a irmã de dez anos. As duas começaram a brigar lá em cima, por causa da mesma fruta, e Luzia caiu. Na hora não doeu, doeu depois, Luzia não gosta de ir à escola, quer dizer, gosta mais ou menos. Prefere chupar manga e ficar agachadinha no barranco atrás da casa, vendo de longe o movimento da rua.


Creuza, 10 anos


Ainda não tem destino. Viaja de um lado para o outro, com pai, mãe e dois irmãos, à procura de trabalho. A irmã casada mora em Jandaia do Sul, isso é bom, é sempre um ponto da estrada pra se parar quando a situação aperta. A casa que Creuza mais conhece são as estações rodoviárias. Não sabe onde nasceu (“Já me disseram, mas esqueci. Acho que não foi longe daqui, não.”), não sabe de onde veio nem para onde vai (“O pai é que sabe.”).


Ainda não foi à escola, por falta de tempo entre uma viagem e outra. Quer dizer, foi uma vez, estava até gostando de aprender os números, mas teve que sair porque o pai foi mais uma vez deslocado. (Dona Madalena Baltazar, 40 anos, faz parte dessa família dos deslocados do Norte do Paraná. Hoje, está na casa da filha Marlene Iori, que mora em Marialva. Amanhã, não sabe. Onde ouvir dizer que tem trabalho pra ela e pro marido. “Aqui, esses sitiantes, esses fazendeiros, ninguém mais quer arrendar a terra, dar café à porcentagem… eles mesmo tocam tudo, com boia-fria, com maquinaria… não tem mais serviço pra gente assim, sem profissão.”).


Creuza se sente à vontade entre ônibus, plataformas, multidão. Ela roda e roda, de olhos fechados entre os passageiros, a saia de gaze cor de rosa levantada na ponta por uma mãozinha miúda. E canta uma música só de melodia que inventa conforme a vontade.


Tânia, 13 anos


Antes de ser moça, e depois de ser menina, a mulher passa por uma fase que não tem mais nome nas grandes cidades do consumo. Mas no Norte do Paraná ainda tem menina-moça. Tânia Maria Silva mora na estrada da Cooperativa de Marialva.


Tem sete irmãos e um olho grande e desconfiado, os seios nascendo por baixo do vestido verde. Ela fica menina quando a gente pergunta pelos namorados (“não tenho, nem quero saber dessas coisas"), pela vida (“não sei não”).


Fica moça quando a gente pergunta do trabalho (“tomo conta dos irmãos pequenos e ajudo a mãe”) da lua cheia (“bonito, né? Tão bonito”), do cheiro das coisas (“e as coisas tem cheiro? Cheiro tem capim, flor, cafezal”). E aquele olho desconfiado, de porta fechada, com medo de abrir.


Mari, 11 anos


Nissei, de sobrenome Yaedu. Acha Arapongas — a cidade que só tem rua com nome de passarinho, pouca árvore e muita casa de alvenaria — muito legal, mas muito legal mesmo. Tem lanchonete pra ir, tem festinha, ela vai muito em festinha, tem cinema. Tem um namorado também (“o pai faz de conta que não sabe, a mãe fica de olho, mas tudo bem”). Beijar o namorado, nunca beijou (“mas a minha amiga já. Como é que foi? Ela disse que foi mais ou menos”). Mas pegar na mão, já pegou. E sentou juntinho também, sem conversar.


Maria, 18 anos


Nascida em Maringá, estuda o fim do ginásio à noite e trabalha de dia: Maria Araújo é balconista de uma loja de artigos de noiva. (“Nossa, como esse pessoal casa! Não tem medo mesmo, de falta de dinheiro e tudo.”). Já teve namorado meio sério, mas não deu certo. Seu sonho é um casamento bem bonito. Acha importante a mulher casar virgem. Mas se a moça for sincera e não for mais virgem (“essa desgraça pode acontecer com qualquer uma”) também merece uma oportunidade.


Regina, 19 anos


Ela faz parte da geração mais nova que não tem raízes em cidade de passado nenhum; sua procura faz parte da procura dos jovens do seu tempo, e o espaço da resposta está limitado por Rolândia. Os pais, austríacos, a apoiaram com toda a evolução secular do Velho Mundo, quando Regina Hirsch, solteira, resolveu que sua filhinha Caroline ia nascer. Hoje Caroline tem um mês e meio e Regina está serena. (“Cada um pensa na sua liberdade de um jeito diferente. Não me sinto presa a dever, nem a preconceito. Financeiramente ainda dependo de meus pais, mas não é isso que tira a minha liberdade.”) O que, na cidade e em Londrina, foi um escândalo, na casa de Regina foi um acontecimento feliz. (“Antes dessa história toda eu achava meus pais super atrasados. Mas não sabia que eles eram tão à frente do tempo deles. A mãe do meu noivo, de família mineira, também é demais, sabe? Ela sempre me incentivou a fazer as coisas que eu gosto, pintar por exemplo. O pai dele não conversa comigo, mas ele é legal também, muito fino, educado. Não me incomodo com o diz que diz dos outros.”) Talvez ela case mais tarde com o pai de Caroline, depois que os dois se formarem. (“Vou fazer vestibular em julho, administração de empresas. Acho importante a mulher ter profissão. A liberdade econômica é um passo grande para se impor diante de todos os preconceitos que ainda existem em volta da mulher.”) E de repente Regina não é apenas mais uma mãe solteira de uma geração problemática. É simplesmente uma mulher e seu filho, com raízes na memória universal.


Sueli, 23 anos


Sueli Teresinha Vieira nasceu em Curitiba, mas há três anos mora em Jandaia do Sul: ela, o pai e a mãe mudaram para lá porque a irmã de Sueli, casada, com dois filhos, precisava de alguém para cuidar das crianças enquanto terminava o curso de ciências biológicas em Maringá. A mãe de Sueli achou que era uma boa ideia ficar perto dos netos, o pai aposentado também. Sueli é professora primária e há dois anos trabalha como supervisora de área do Mobral: a região do vale do Ivaí, que inclui Cambira e Jandaia do Sul, além de mais quatro municípios, fica por conta dela. Está achando a experiência maravilhosa: seu maior contato é com comissões municipais de ensino, professores e prefeitos. Na sua opinião a escolaridade da mulher jovem da zona urbana dessa região é superior. E também acredita que as relações entre homem e mulher antes do casamento são coisas que fazem parte da vida, perfeitamente naturais e certas. Mas no seu caso particular, talvez por causa da educação, não quer que aconteçam antes do tempo, uma espécie de instinto de preservação. Viaja muito, sozinha a maior parte das vezes, entre Maringá e Londrina. Acha que é totalmente emancipada.


Neusa, 25 anos


Ela mora em Arapongas e trabalha como garçonete no bar e restaurante do pai, o sr. Yaedu. Faz Filosofia na faculdade de lá, assim por fazer apenas, não pensa em lecionar ou filosofar. Sua maior preocupação, por enquanto, é ver se consegue ganhar uma bolsa de estudos para o Japão. (A família Yaedu veio de São Paulo há 27 anos, o pai e a mãe são filhos de japoneses legítimos). Neusa acha que a mulher ainda depende bastante do homem e não concorda com muita liberdade. Não tem namorado ainda.


Sigueko, 29 anos


A doutora Sigueko Murata tem consultório de cirurgiã-dentista montado em Maringá. Nasceu no Estado de São Paulo, mora aqui desde o ginásio e é formada pela Universidade de Curitiba.


Solteira, acha que a melhor época para casar é durante os estudos. Depois é mais difícil. Mora com pai e mãe, ele japonês legítimo, nascido no Japão. Sigueko não tem noivo ou namorado: acha que existe certo preconceito contra a mulher de profissão liberal, por ser mais emancipada. Livre, não; na sua opinião não existe mulher livre: a tradição é muito forte e o Norte do Paraná é conservador. Virgindade? Coisa obrigatória para mulher solteira que quiser casar ou ficar fora da boca do povo. A doutora Sigueko pensa em se casar.


Luzia, 32 anos


Um táxi nos leva até a casa de Luzia Della Libera Rau, senhora da sociedade de Cambé, marido despachante, nascido no Líbano, veio para cá com sete anos. O marido. Ela veio mais tarde, depois do casamento. Nasceu em Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo. Três filhos. (“Pertencemos ao Lions Clube, pertencemos ao Harmonia Tênis Clube. Nós desfrutamos da piscina, do salão de festas, que é um espetáculo, e temos as atividades do lar que são jantares, recepções, etc. Pertenço a um Clube de Mães e uma vez por semana damos curso para as mães pobres. Aqui em Cambé temos cinema, mas preferimos frequentar os de Londrina, é tão pertinho. As mulheres que conheço comportam-se muito bem: cuidam da casa, dos filhos, saem à noite com o marido. Não gostaria de trabalhar fora de casa. A gente fica meio escrava do horário, né? Em casa a gente tem uma vida mais recatada, mais tranquila.”)


Lurdes, 38 anos


Dona Maria de Lurdes Jordão tem 11 filhos (“cinco casados e seis por aí”). Mora em Arapongas e é largada do marido. Para sobreviver faz de tudo um pouco, menos matar e roubar. Diz que mulher trabalha mais que camelo e ganha pouco: diária de faxineira é dez cruzeiros. Na sua opinião, o que mais vale para os pobres é a boia-fria, caldeirão de comida resfriada que a gente leva pra comer durante o trabalho de carpir soja e café nas fazendas. Diária de boia-fria é vinte cruzeiros se é mulher: vinte e cinco se é homem.


Tem um ponto ali pertinho de casa, na rua Rouxinol, em Vila Aparecida. (“A gente chega às seis horas da manhã no ponto, enxada nas costas, marmita da mão. O “gato” — quem contrata, traz e leva o pessoal e faz os pagamentos — põe todo mundo num caminhão, às vezes vão até setenta pessoas, tudo em pé e apertadinho, igualzinho a Santo Antônio.”) Dona Lurdes informa que, durante a viagem, é aquele esfrega-esfrega, não por vontade, mas por necessidade do momento. (“Se encostam na gente não estorva, não”.)


Zeugma, 41 anos


Junto com o marido, ela saiu de Óbidos, Pará. Viajaram 17 anos, o marido era caixão e representante de firmas. Quando chegaram em Maringá, o filho mais velho estava com 9 anos e o mais novo com 10 meses. Acharam que era hora de parar, as crianças iam precisar de estudo. O marido saiu na frente, sondando o terreno, e chegou à conclusão de que Cambé era o lugar. Primeiro arredaram o Hotel Paratodos, hoje Marujá. Em seis meses arrendaram outra casa, reformaram inteira, e ficaram por ali os dois, no atual Hotel Rio. Dona Zeugma foi casada vinte anos. (“Agora fiquei só eu: pago, vendo, recebo, faço tudo. Precisa coragem”.)


Viúva, dona Zeugma zela pelo serviço de manhã, à noite é porteira. Uma sobrinha ajuda, que empregada aqui é difícil: na safra todas largam o serviço e vão para o campo no caminhão dos boias-frias.


Rute, 43 anos


Na opinião de dona Rute Campi Aidar, que mora numa casa de madeira limpa e bem cuidada atrás da venda de seu marido, mulher do Norte do Paraná que não nasceu muito rica morre de trabalhar antes do tempo. (“Eu já trabalhei mesmo, trabalho que precisa ser meio machão pra aguentar. Levanto às seis da manhã e vou até nove da noite. Atendo o bar, o açougue, fazendo entrega de carne a domicílio, mato porco, pinto o sete aí”.) Dona Rute veio de São Paulo menininha, faz 42 anos. Cresceu e se formou em Cambé. (“Formada em que? Ora, em moça, em mulher, vou fazer 25 anos de casada, cinco filhos, uma casada que já me deu um neto. Essas mocinhas novas? Não têm a disposição que eu tenho, boto três par delas debaixo do braço.”)


Os cabelos estão despenteados e cortados por alguma bem-intencionada e mal-sucedida amiga. O vestido é simples, de trabalhar em casa. Para tirar fotografia ela quer se arrumar, roupa de domingo, de ir à missa. O marido põe a cabeça pelo canto da porta da cozinha e olha contrariado, preocupado: “falação de mulher nunca me deu em boa coisa”.


Maria, 53 anos


Na rua encontro a barraquinha de fruta de dona Maria, japonesa legítima de 53 anos. Dona Maria? É. (“Brasileiro mesmo ensina meu nome, né? Eu já não gosto de falar nome de japonês… muito feio”) Dona Maria é viúva, tem sete filhos, caminhão matou o marido na estrada, ela teve derrame, a mão direita ficou dura, já não serve pra nada. Mas ela está sempre rindo, fazendo força para manter os sete filhos na linha e no trabalho.


Hilde, 60 anos


A secretária do Consulado Honorário da Alemanha em Rolândia, Hildegard Kempf, foi a primeira desquitada da região. (“Me casei em 1936, com um alemão mesmo, como eu, que sou do território de Saar. Naquele tempo, Rolândia nem hotel tinha. A gente pegava o cavalo e andava de carroça. Em 1951, o casamento não deu mais certo… tive problemas com isso, preconceito, uma mulher sozinha, em Rolândia, era coisa que os brasileiros não entendiam. Mas minha família me deu apoio. Tenho um filho, que mora comigo”.)

 

“Como mulher, no mais, eu acho que fora isso de não ser enxergada, o que já é algo complicado, porque homens muito menos talentosos ou dedicados eram muito mais valorizados. Eu sempre fui de tocar em frente e de brigar por salário, funções iguais, salários iguais. No mais, era porque a gente era muito jovenzinho então era: ‘Ah que bonitinho, ela escreve”. E com os meninos não, eles já eram repórteres, jornalistas e a gente era só bonitinho mesmo.” - Célia Regina de Souza

 

Dona Hildegard tem os cabelo ralos, olhos azuis assustados, pele muito clara e sofrida, as mãos um pouco trêmulas. Foi a primeira e única pessoa que usou a palavra raízes para justificar sua presença na terra. (“Meu filho é brasileiro, meu neto é brasileiro, eu mesma sou naturalizada. Não penso em sair daqui.”)


Deixamos Rolândia com a sensação de estar saindo da cidade mais evoluída do Norte do Paraná. Pegamos novamente a estrada, que nos levou até Apucarana. De Apucarana (o que é que está fazendo Maria do Bigode, sentada sozinha num canto de muro, falando sozinha, se contando histórias, dizendo que tem 20 anos e 10 filhos, mas a gente só vê o cachorro preto que a segue por toda parte?), fomos para Cambira, Jandaia, Mandaguari, Marialva, Maringá. Depois, voltamos. Chegamos em Londrina com a sensação de viagem acabada, e ao mesmo tempo por começar. Uma viagem estranha na alma de mil gestos de uma mesma face de mulher.


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