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Londrina de João Antônio


João Antônio


No final de 1974, João Antônio arrumava as suas malas às pressas para passar uma semana no interior do Paraná, em Londrina. O jornalista acabou ficando cerca de dois meses.


Convidado a trabalhar em um novo jornal, mais tarde conhecido como Panorama, o relato expõe os anseios, surpresas, alegrias e frustrações do escritor sobre o Norte Paranaense. Esta reportagem especial é fruto das primeiras impressões de João Antônio sobre a Londrina do final do século 20.


Nesta reportagem, há um pouco de tudo. Aeroportos, táxis, bares, restaurantes, noitadas, antigos e novos conhecidos, passeios despretensiosos por bairros e comércios e muita terra vermelha. A diversidade étnica e os contrastes de uma região onde o calor castiga chamam a atenção do escritor que sente falta da brisa marinha e das praias abençoadas pelo Cristo. “Estou no Norte do Paraná e é bom que enfie isso de vez na minha malemolência praiana”, confessa João Antônio.


João Antônio (1927-1996) foi um escritor e jornalista natural de São Paulo e ganhou notoriedade ao consolidar o gênero do conto-reportagem no jornalismo brasileiro. Em 1962, estreou na literatura com “Malagueta, Perus e Bacanaço”. A obra lhe rendeu prêmios como o Jabuti, sendo esta uma dupla premiação — autor revelação e melhor livro de contos —, além do prêmio Fábio Prado e do Prêmio da Prefeitura Municipal de São Paulo.


“Aos 16 anos, fui nos botequins e nas sinucas encontrar um ambiente vivo e leal, onde o malandro te toma o dinheiro na tua frente, mas não te explora sem você saber.” Esta, a formação inicial do escritor João Antônio. Seu primeiro livro foi Malagueta, Perus e Bacanaço, 1962, ganhador de vários prêmios. Traduzido em cinco países, no ano passado João ganhou prêmio no Concurso Nacional de Contos do Paraná (os contos serão publicados este ano no livro Leão de Chácara). Convidado a escrever especialmente para o jornal Panorama, João veio à nossa cidade para passar no máximo uma semana: acabou vivendo aqui há quase dois meses.

Mais um telefonema me pega no banho. De Londrina, Norte do Paraná. Nada. A coisa era mais quente do que eu pensava. Desta vez, devia fazer as malas, pegar a escova de dentes, catar as coisas, descer do apartamento, como sempre me pôr a caminho, me mandar de avião, já estava trabalhando.


Sobrava algum tempo, bermudas e chinelo à noite, dar a derradeira volta pelo calçadão de Copacabana, me despedir das areias e do mar. Toquei a pé até a pedra do Leme, virando uns pensamentos, engordando umas coisas da vida.


Não, Londrina, não. Fazer um novo jornal com aquela gente reunida em Londrina, não. Falassem Recife, Salvador. Estado do Rio, vá lá. Seria um jato de demência média, devagar, compreensível ou considerável, batendo em cheio, de chapa, com a natureza e a coragem dos homens que estavam metidos na empreitada. Afinal, tenho aprendido nestes anos todos, que os que têm talento ou habilidades pagam por isso. E alto. Minha geração e eu juntos ou separados, cada um no seu canto de cidade ou Estado, temos nos mexido ou sobrevivido quase miraculosamente, como pingentes urbanos e artistas da própria instabilidade. De comum, tem sido necessário destrambelhar, extrapolar, quando se pretender fazer alguma coisa ou existir.


Gente assim — Miltainho, Narciso Kalili, Hamiltinho de Almeida — ganha uma estranha capacidade de manobra. Por um lado, obrigada a um corpo a corpo com a vida, come o que o capeta amassou com o rabo. E pode, nessas e outras enfiadas, enviesar por perspectivas novas, forçar aberturas, buscar lances e acabar fazendo um O Bondinho e um Ex. Compensação que vale o risco. Entendido.


Quando em quando, numa redação de jornal ou revista, num encontro de rua, num telefonema, no Rio ou em São Paulo, uma notícia nova, um elo engrossando o jato de loucura me chegava explodindo. Haviam seguido para Londrina, depois de Ruy Barbosa, Narciso Kalili e Miltainho, abalados de São Paulo. Igualmente Mário de Andrade, Georges Bourdoukan, falava-se também em Amilton Vieira, na fotografia. Trajano, este para o esporte, saíra do Rio e estava lá desde os começos. Boatavam, é claro. Comentavam a ida de Gontigo e de Hamilton de Almeida Filho. Esses nomes, pelo tamanho e passado, saídos do Rio e de São Paulo, fariam sem dúvida, uma equipe de peso e piso, como se dizia à antiga, e como, no momento — a bem dizer. São Paulo, Rio e Belo Horizonte não conseguiram reunir. De mais a mais, por motivos de mercado, a coisa aqui carioca estava ruça, encolhida, temerária. O mercado é um ovo, isso é que é. Então esses boatos, unidos e concluídos, provavelmente queriam me enlouquecer.

 
“Na medida que chegava mais um, as pessoas comentavam: ‘Não é possível que fulano esteja lá!’ e isso começou a correr nas redações do Rio de Janeiro e São Paulo. ‘Vocês estão sabendo que tem um jornal em Londrina? Um jornal que ainda não saiu, vai ser fundado e estão lá o Narciso Kalili, Rui Barbosa, Jayme Leão…’. E aí quem apareceu lá, o grande personagem, o João Antônio, o maior escritor deste país, que foi ser repórter do jornal.” — José Trajano
 

Na manhã, tocado num táxi, eu me mandava para o Novo Terminal do Galeão. Não havia ainda saído de Copa e o rádio despejou:

— Selvageria em Copacabana. Cena de canibalismo num apartamento da Rua Domingos Ferreira. Filho de dezenove anos matou a mãe a facadas e depois executou um haraquiri dantesco com a faca. Moradores do prédio, síndico e política estão estarrecidos.


Tonto com a descarga, tenho de ouvir outra vindo do motorista do táxi, logo à entrada do Túnel Novo de Copa:

— Está aí. Culpada é essa juventude que não tem nada o que fazer é só tomar drogas e aprontar.

 

Cena de canibalismo em Copa. Um menino, de dezenove anos, abrindo as carnes da mãe depois abrindo as suas carnes da barriga. Que mundo! E ali, na Domingos Ferreira, pertinho de onde moro, a um passo. O motorista de táxi atira responsabilidade sobre a juventude. Como explicar a esse homem que Copacabana não passa de um viveiro de supertensões, cargas represadas e frustração, neuroses e seu homem está exprimindo entre uma classe média desesperada pelo custo de vida e uma massa de homens do provisóriado, agarrados à Zona Sul da cidade como os pingentes se agarram aos trens suburbanos da Central? O garoto de dezenove anos certamente não poderia estar vivendo fora do sanatório. Ninguém abre as carnes da mãe, a facadas, por não ter o que fazer.


Levando quase uma hora de táxi, chispando na manhã, ganhando o Aterro do Flamento a 85 por hora, até alcançar a Ilha do Governador e tomar o Novo Terminal do Galeão, precário, inconveniente, muito distante, difícil, teto baixo, ausência de serviços, um calorão já às nove da manhã.


Este é um país em que as pessoas se aprontam, vestem as roupas melhores, mais caras ou mais avançadas para andar de avião. Homens metem-se em roupas de executivos, as mulheres enfiam chapéus, tratamentos, lantejoulas. As minhas sandálias abertas, o blusão de mangas curtas fora das calças, a barba por fazer certamente estarão incomodando as solenidades de meus companheiros de viagem. Que me desculpem, senhores passageiros do jatão com destino a Londrina, Norte do Paraná, com escala por São Paulo.


"Vejo edifícios. Julgava, no meu desconhecimento, que não tivesse mais de dois ou três aí pelos cinco andares."

A tripulação muda de cores e sotaques, os passageiros também. Fala-se com sotaque italiano ou agauchado, as mulheres são mais claras, menos ginga, catimba, graça, veneno e as pessoas se comportam menos à vontade, mais graves do que nas ruas do Rio.


É o Sul começando, se estrangeirando. A mistura vai aumentar em São Paulo. Com a mudança da tripulação de jato, a morenice e a carioquice ficam ainda mais distantes, a malemolência acabou, a espontaneidade está se sumindo nos ares. Os mass mudaram, cadê o chiado da fala, o pessoal da aeronave aloirou-se, os jornais são outros, outras conversas.


Desembarco no aeroporto de Londrina e não acho isso nem aquilo. É um pequeno aeroporto que me chegou aos ouvidos uma vez, como um dos mais movimentados do Brasil nos tempos dourados do café, aí por 1950. Daqui vejo alguns grandes edifícios da cidade. Julgava, no meu desconhecimento, que ela não tivesse mais de dois ou três aí pelos cinco andar

 
“Londrina começava a pintar uma cara de metrópole naquele tempo e ao mesmo tempo era provinciana, o próprio sonho era provinciano.” — Domingos Pellegrini
 

A terra roxa está me gritando, ela se enfia em tudo, se intromete. O calor é bravo, o motorista do táxi reclama, num sotaque acaipirado, mais do Interior do Estado de São Paulo do que do Sul. É preciso que haja mesmo um jornal de peso aqui para que se denunciem as coisas do trânsito e o preço sovina, insuficiente dos táxis. A brasa para a sardinha dele.


Uma arquitetura de mixórdia e contrastes, me vai aparecendo pelo caminho que o calor castiga, um sol ardido, como diz o motorista. O Norte do Paraná que me desculpe, isto não é o Sul do país, é uma desarrumada confusão de arquitetura. Tem de tudo. Desde casinhas de madeira, até alvenarias e passando quase por choupanas. Há verde, mas faltam árvores. Compreendo isso logo, no corpo, nos pés, nas mãos que estão pegajosas. Um vento, o bochorno, me batendo na cara pela janela do carro de quatro portas. Não, não há mar — não me adianta olhar suplicante para a esquerda, para a direita, para a linha do horizonte. Estou no Norte do Paraná e é bom que enfie isso de vez na minha malemolência praiana. Brisa marinha, não há.


Roxa, vermelha, terra de siena. Olho a planície e estou na terra roxa, dadivosa, a que dá de tudo, segundo sei, e que levou o café deste país às alturas nos mercados internacionais. Quando o motorista me faz o troco já compreendo — é a terra que envolve e aqui dobra o homem. Ela é forte, está incrustada, metida de vez e para sempre, até no dinheiro da região.


Um dinheiro vermelho-roxo, marcado pela terra.

 

Encontro a minha gente metida nos fundos de um edifício de dois pavimentos em construção, cuja fachada será de falso concreto, moderno, baixo e comprido amplo. Passo pedreiros, homens trabalhando, começam sinais de mão e abraços. Estão todos mudados, há algo novo. Narciso Kalili, os cabelos embranqueceram, uma barba profética, os olhos claros. Miltainho de botas e engordou. Georges Bourdoukan, barba crescida, talvez mais magro. Mário de Andrade, eternamente calmo nos olhos claros, tranquilos. Têm a mesma agitação que teriam em qualquer redação de jornal ou revista do Rio ou de São Paulo. Mas há algo, inexplicável, indefinível. Sei lá, não sei não, é muito cedo para julgamentos. Mas nunca vi em anos e anos, nesta ou naquela cidade, jornal ou revista, a trabalho ou a passeio. Milton Severiano da Silva ou Narciso Kalili de cara tão boa.


O sol ardido, dando de chapa, sumiu e deu numa chuvada de vento, caindo em linha inclinada, firme formando poças vermelhas. Os homens da construção param o trabalho, espiam a chuva. Já sei que aqui não é o lugar para as minhas sandálias abertas e para as higienes falsamente civilizadas. Homens daqui são marcados pelo pó vermelho, terra de siena, até entre as unhas.


Incrível, lá em Copacabana. Mais inacreditável aqui, menos de duas horas depois do voo do jatão — realmente os caras vão fazer um jornal e, fantástico, eles estão aqui — Mário, Narciso, Bourdoukan, Miltainho, Ruy, em carne e osso. Uns até mais gordos.


Chuva não diminui o calor e almoçamos numa tal Churrascaria Campo Grande, onde a comida vai me embebedando pela quantidade, pelo sabor. Um despotismo de comida, um desperdício, muito maior do que o que conheci em Porto Alegre, Florianópolis, nos restaurantes de beira de estrada a caminho do Sul ou nos Interiores do Rio Grande do Sul, onde o exagero dos pratos já é absurdo. Mas aqui, come-se e bebe-se escandalosamente. Se a entrada inclui uma variedade de saladas, tomates crus, batatas, feijão branco, e quando chega a carne, a tal bisteca, no espeto, colocada como uma bandeira no centro da mesa, estou empanturrado. A cachaça amarela é de qualidade. Somos seis ou sete comendo e suando, numa churrascaria que mais parece um casarão de família colocado no fundo do quintal, depois das árvores e das gaiolas dos pássaros. Por que se come tanto, por que se bebe tanto? Por que a arquitetura é tão desencontrada lá fora, uma catedral redonda e em estilo inglês, o pó da terra enfiado em tudo, ao lado de charretes — me lembro que passei em frente a um centro de serviços de dados IBM onde havia uma charrete puxando a burro — por que esse desconcerto?


As coisas se embaralham, difíceis, para a minha compreensão, muito necessária a cama, o hotel, dormitar um sono. Uma misturação, muitos tipos de contrastes nas ruas, carrocinhas de cachorro quente nas esquinas com nomes engraçados. Degão, Au-Au, as bancas de jornais, e revistas têm nome: Banca Fim da Picada, Banca Amiga, Banca Triângulo, Banca Panorama. Japoneses, polacos, negros, mestiços, tipos matutos, carros de preço, ônibus. Enfio-me no hotel, enfio-me debaixo do chuveiro, enfio-me na cama. Peço tempo para pensar. E concedo-me, por cansaço.

Rita da Silva


Desnorteado de dia, mais desconcertado à noite. Acabo, entre amigos e desconhecidos — um carioca, um nisei, Miltainho num tal Posto Karango do Trevo Cabé-Mauá, onde uma tal Rita da Silva está aniversariando. Essa Rita da Silva, uma dama da noite, prostituída ao longo do caminho, é uma loira envolvente, desnorteante, de longo cor de vinho e olhos pintados de verde e faz num posto de gasolina uma festa de aniversário parecendo festa de família, onde há docinhos e salgados. Parece-me que convidou os melhores clientes ou amigos de confiança. Fala muito, abraça, não deixa a peteca cair, serve bebidinhas, trouxe as suas colegas de bordel. Motiva a convivência, apresenta um desconhecido ao outro, pede música, não deixa o movimento morrer. Às 23h, 45 minutos no Posto Kalango, pelo que entendo, Rita da Silva está convivendo com o alto mundo nisei da soja de Londrina e de outras cidades vizinhas no Norte do Paraná.


Muito talento, sobe numa cadeira e pode uma homenagem a si mesma. Cantamos o “Parabéns a Você”, ela recebe presentes como se fora uma adolescente aniversariando, enquanto o carioca que nos acompanha revela-se um envolvedor de categoria, há uma roda de fazendeiros jovens e nisseis em torno dele. Falando de coisas que entende ou não — bolsas de cereais, safra, soja, milho, café. Alguém me diz, meio bêbado e à boca pequena, que demente mais do que bula de biotônico.


Amanheço o meu segundo dia de Londrina e reconheço que com Ritas da Silva, Charlas cariocas, arquiteturas desconexas, comilanças extravagantes e libações desenfreadas, só há uma salvação. A cidade é desconcertante? Então, vou-me desconcertar. Compro, junto a um lambe-lambe do Bosque, na praça arborizada ao lado da catedral, cartões postais, uns quatro e envio para amigos jornalistas. Faço só uma frase em cada um:


Para Paulo Patarra: “Londrina é outra civilização”.

Para Luís Fernando Mercadante: “Abaixo às megalópoles!”

Para João Bath: “In Londrina Veritas”.

Para Eurico Andrade: “Deste lado do Paraíso”.


Fico imaginando, enquanto tomo um copo de garapa, debaixo de um sol sem brisa, a confusão e as caras desses amigos quando receberem o postal. A cidade tem muitos garapeiros que vendem também sucos de frutas, colocados nas esquinas.

 

Uma tarde, no hotel, notei que a minha calça urbana, carioca e falsamente classe média, estava vermelha de terra, impregnada de roxo avermelhado na barra. Nem adiantaria arregaçar, nem chamar a camareira a entregar à lavanderia para uma limpeza. Estava impregnada como todas as barras da cidade. Estivesse limpa e precisasse dar um giro pela cidade, um só, ela voltaria roxa. Também notei que meu isqueiro a gás havia acabado e agora usava fósforos do Paraná.


Esse momento, rápido como um susto, me deu fé dessas mudanças. Era aceitar, não havia jeito. Aí, então, a partir dessa anuência, pareço ter começado a pisar em Londrina, a andar sem as minhas pernas.


Desci, fui para a Praça das Flores, de que ninguém sabe o nome, ali na floricultura, defronte ao Café Cinelândia, num banco sinuoso de cimento, comprido na praça, a que chamam de Minhocão, entre uns vinte garotos engraxates que me disputavam, engraxei os sapatos e fiquei olhando mulheres, tipos, a banca de jornais e a carrocinha do cachorro quente. Havia, uniformizados, 600 engraxates na cidade, fichados no Juizado de Menores. Usavam macacões de mangas curtas, um azul escuro desbotado, eram meninos entre dez e doze anos. Uma engraxada custava a metade do Rio ou de São Paulo — Cr$ 1,50. Tudo diferente neles, tinham sotaques do Interior paulista e eram bem melhores brincando do que engraxates, não tinham o tom profissionalizado safadamente esperto da molecadinha paulista ou malandragem da batucada na caixa dos engraxates do Rio. Tímidos e infantis.


Meus olhos viajavam para as mulheres que passavam. Tipos variados, miscigenação de nisseis e polacos, pouca mulatice ou negritude. Não vestem mal, não calçam mal, mas lhes falta um quê, a ginga, a pegada carioca, o requebro, a catimba. Não sei empertigam, não fazem aquele jogado, aquele caído lindo de cabeça, não jogam a barriga para dentro, as nádegas para fora, não fazem passo miúdo, nem esquecem os braços estirados indo e vindo ao longo do corpo, e por isso não têm bom balanço nas cadeiras. Falta-lhes altanaria na colocação da cabeça e de queixo. Andam encolhidas, contraídas, como se escondendo. Falta-lhes manha ao subir o degrau do meio-fio. São mulheres que não mostram o pescoço.


Aquilo que me incomodou um tanto. Afinal, a nissei que atendia no balcão da floricultura era esguia, cabelos pretos, lisos, olhos rasgados, agazelada. Uma graça.


Toquei pela Avenida Paraná, entrei num barzinho, construção velhusca, castigada e encardida pelo tempo, o Suzuki, com um pastel de palmito, saboroso, paguei trinta centavos a menos que no Rio: Cr$ 1,20.


Já vi, em menos de três quarteirões, mais de oito vendedores de bilhetes de loteria. É um dos bons negócios da região, sem dúvida.


Ando. A Avenida Paraná é uma misturação comercial, bateria de serviços, cafés e cinemas. Não há livrarias. Ou antes, há papelarias que, entre outras coisas, vendem livros. Os títulos são poucos, os best-sellers americanos, muita capa erótica e poucos autores nacionais. Nada além da dupla badalada já mais de trinta anos em todas as livrarias do país: Érico Veríssimo e Jorge Amado. Converso com um estudante nissei — meio contraído, meio cabisbaixo, mas me olhando de frente atrás de seus óculos de grau, diz que certos livros, quando estudantes necessitam, são comprados em São Paulo. Por que não Curitiba? Não é mais perto?


Na frente do Cine Ouro Verde, defronte a uma praça (Willie Davids, um dos fundadores da cidade), que ninguém sabe o nome, um homem bem vestido, barba tratada, uns 45 anos, anda agitadamente no meio-fio para a posta dos estabelecimentos e berra essa coisa estranha profética e inesquecível:

— Três entre três são as três que eu semeio!


Grita, os dois pés sobre o meio-fio, olhando o céu. Descubro que se chama Caruso, um dos loucos conhecidos da cidade.


"Se Rosângela surrealista existe, tudo lhe é permitido. Há um conjunto musical reunindo pai, mãe e filha."

Resolvo andar de ônibus. Toco para o ponto ali da praça, onde um ajuntamento de gente mais pobre, mais suja, roupas piores, espera. Num banco da praça, um velho conta moedas. O ônibus que mais demora, o que pretendo tomar, faz um dos percursos mais longos, para o Jardim Leonor. Em dez minutos de espera, sou suplicado por cinco mendigos — meninos e mães mulambentas com crianças de colo.


É descer para os lados da Rodoviárias, dar com os pedintes, crianças esmolando e sentir na pele que os postais me mentiam a cidade. Aqui, não é um ponto a desfavor de Londrina. Afinal, todos os postais do mundo mentem colorido.


Meto-me no ônibus W. Hauer - Shangrilá, vou de coletivo até o final da linha. Por dentro e por fora, tudo no ônibus é marcado pela terra roxa — rodas, bancos, passageiros, cobrador, motorista, dinheiro, uma camada de pó, sempre renovando nas costas das poltronas. Nada para limpo. Os motoristas têm os mesmos defeitos dos paulistas, que a população carioca não tolera. Param longe do meio-fio, a um ou dois metros de distância, dificultando a subida ou descida de mulheres e crianças, freiam abruptamente. Correm menos que no Rio e mais do que em São Paulo. No seu interior, não se pode dizer que haja aquela camaradagem carioca entre os passageiros, mas há mais respeito e atenção pelo vizinho do que em São Paulo. As pessoas, mais simples e mais rudes, não sabem. O povo do ônibus é humilde, meio quieto: não é alegre como o carioca, não é carrancudo e fechado como o paulista. O sotaque é sempre mais para Interior paulista e, nessas condições, é onde mais aparece o negro e suas miscigenações mulatas e cafuzas da cidade. É um negro típico, acaboclado, sem os meneios do carioca, nem a ginga do baiano. Mas é igualmente doce, vivo, sensível e algo nobre na sua humildade impregnada de pó vermelho.


Desço, apoio numa alameda da oitis, ao lado da estrada de ferro, no Jardim Shangrilá. Muito verde, chão asfaltado, casas térreas, boas, enormes, com jardins enormes, tudo parece resolvido aqui. Havendo dinheiro, o cidadão terá televisão, aparelho de ar e todos os eletrodomésticos. Havendo telefone, a tecnologia permitirá que se fale do Jardim Shangrilá com Paris, Nova Iorque ou Londres. Luz elétrica, água encanada, pavimentação e outros tratamentos. Um trecho de cidade norte-americana do Interior, como talvez dissesse Hamiltinho de Almeida.


Mas dou para atravessar os trilhos do trem e caio em outro mundo, num golpe. É o Jardim do Sol. Aqui começa um mundão de pobreza, outra Londrina, uma cidade que me aparece de pés no chão.


Quem olhe do Jardim Shangrilá para a linha do horizonte depois dos trilhos do trem verá, enquanto ouve as cigarras e o farfalhar do arvoredo, o pio de algum pássaro, após um pequeno vale, uma planície toda verde, cultivada de cafezais. Terá uma visão de abastança, tranquilidade e riqueza. Longe de supor o que há entre a distância que separa o Jardim Shangrilá dos verdes do cafezal. Uma miséria que mistura gente mais magra, pé no chão, casas de madeira, duas águas, cães, cavalos e burros magros pelas ruas, onde a terraplanagem se existiu foi precária, cercas cambaias de ripas, ausência de árvores e uma tendência firme para se transformar no pior tipo de favela — a favela na horizontal. O sotaque é mais acaipirado, há uma igreja de madeira como nas cidades do Sul, não se vê uma criança com bons dentes. Um grupo escolar, uma escola para excepcionais, alguns botequins, biroscas, farmácias, um barbeiro de uma cadeira só. Ar parado ou ventre quente, completa ausência de planificação no casario imundo, irregular, bagunçado. A birosca e o botequim são escuros, feios e tristes. Do lado de fora, as portas de duas folhas de madeira poderão até parecer coisa bonita, antiga, como os botequins do Estácio de Sá no Rio. Quem passar para o lado de dentro, dará com pobreza das prateleiras, do sortimento, atrasado e ruim. Homens desocupados e desanimados nos botequins, crianças desdentadas e de pés no chão nas ruas. Como em todo aglomerado pobre as crianças proliferam, muitas, maioria que esmaga. No Jardim do Sol, a misturação das cores mostra que polacos e negros estão marginalizados, embora perto das coisas boas da cidade. O de melhor fica em cima do asfalto, o que não presta fica nas áreas de terra. E o pior é que não há tempo nem espaço de defasagem. A cidade é dividida em duas, antes e depois dos trilhos do trem. Para cima, a fartura e os equipamentos; para baixo, um miserê bem marcado por um traço de ironia velhaca dos nossos tempos. Há antenas de televisão em quase todos os telhados pobres, há um e outro automóvel moderno.


Atravesse a linha do trem e caia no mundo. Tem a feiura da necessidade. Mas também é verdade que se o visitante tiver passado pobre, vai dar um passeio por sua infância. De dia e à noite outra Londrina está lá. Mas foi o único lugar da cidade em que vi à noite de esquinas mal iluminadas, o amor de namoradinhos. O mesmo amor de qualquer esquina de bairro pobre do mundo. Sempre aquela coisa enluarada. Não vi isso nas praças do centro, nos bares falsamente elegantes, nem no Igapó, nem em Higienópolis. Em toda Londrina, nunca vi uma cena de beijo na boca, sugado e espetacular, tão comum em qualquer lugar público do Rio de Janeiro.

 

Descubro, uma noite, que na cidade se come bom peixe pintado, de couro e de água doce. Na Rua Professor Cândido, 333, numa esquina providencial, está plantado um restaurante Rodeio que, para o meu gosto, é um dos pontos altos da cidade. Mantendo a dignidade de ser meio restaurante e meio casa de noite, entrando pela madrugada, é quase sórdido em suas paredes e habitantes. Uma misturação humana o procura — estudantes sem dinheiro, forasteiros, gente de família aos sábados e domingos, prostitutas descidas do Copão em busca de comida mais barata, gente ligada a negócios miúdos, rapaziada, meninos. Parece-me que uma cena do Rodeio vale como síntese do centro de Londrina. Foi onde vi uma família chegar com os filhos menores e logo depois de um grupo de cinco prostitutas, uma negra, uma morena, uma polaca, uma mestiça italianada e uma morena acaboclada. Curioso é como apenas em dois restaurantes da cidade, vi garçons realmente profissionais, vivaços, traquejados, acordados. O Rodeio é um deles.

O vendedor da noite


Traço curioso — tenho comido peixes e camarões de água doce e, até o momento, não vi nenhuma faca de comer peixe na cidade. Para compensar, tenho visto a rudeza dos problemas diretos à ausência da fossa, dos postiços impasses existenciais que a aporrinham a faixa jovem principalmente paulista, carioca e mineira. Ponto a favor de Londrina, claro.

 

A cidade tem quarenta anos e alguns arranha-céus. Habituou-se a gastar, comendo e bebendo, muito mais do que pode assimilar. Com este calorão, batendo nos trinta e tantos à sombra, durante o dia, as refeições deveriam ser leves. Come-se, no entanto, superlativamente. No desfile de restaurantes, as comilanças e libações proliferam variações, principalmente de carnes. E há diversidade: cozinha italiana (Dante e Toscano), chinesa (Tai Wan), árabe (Quiberama), churrascos (Campo Grande, Gaúcha, Pioneiros). Por onde vou, me empaturram.


Quarenta anos e nenhuma raiz, catou tudo de fora, importou todos os costumes. De desconcertante, Londrina está me saindo a esdrúxula. O diabo é que as paixões são esdrúxulas. Estudantes tentam fazer samba com instrumentos caros de percussão e até já me foi apresentada, num posto de gasolina com bar no fundo, O Baiano, uma cuíca de plástico. Mas o samba sai marcha e nada tem que ver com a batida das escolas de samba cariocas. Também não se tira samba no pé, dança-se pulando, mexendo o corpo todo, sem balanço, esquecendo-se do jogo dos quadris. Não vi ninguém tirando samba no pé, vi tirando o pé do chão. Também não vi mulher, por estas noites, que soubesse dar nó nas cadeiras.


Tudo o que sabia ou imaginava sobre Londrina prendia-se aos anos quentes da explosão da alta do café, quando a cidade pontificou como concentração de bordéis de luxo e uma enchente de clubes de jogo. Encontro isso em ponto menos, sem ostentações gloriosas ou grandes lances de loucura. Ouvi, por exemplo, que havia um crioulo sambista molambento, talentoso, enfiando nas madrugadas dos muquifos da cidade, lá pelos cantos da Rua Sergipe, já nas beiradas dos trilhos de trem. Mandei-me, farejei o tipo; encontrei prostituições de rua, feia, malhada, capionga e ruim, misturando-se a travestidos com ar de cansaço e sono e cafetinagem rampeira, fuleira, esbarrando em outras aves noturnas de horror. Achei seu companheiro, um violeiro andrajoso, desdentado, mulato, velho, mais para sarará do que para negro. Lamentou-se, encardido, pedindo um cigarro:

— A política não deixa a gente cantar e tocar na rua. Acabaram com a noite.


Estão, vindo isto de quem veio e com esta força, desisto de procurar purezas, raízes ou fontes de ternura em Londrina.


Estou no Com-Tour Londrina Shopping Center, ao lado do Hiper Mercado Peg Pag, onde há de tudo, em edifício moderno de dois pavimentos amplíssimos — bancos, boutique, o cinema mais fino da cidade, lembrando os cinemas de arte paulistas e cariocas, floricultura, farmácia, xerox, choperia, sorveteria, cafés, docerias — e muito modernos, contrastando violenta e fotogenicamente com os seus frequentadores e tipo físico de terra roxa. Tudo ali parece postiço, artificial, uma briga estética entre o local e as pessoas.


Ando sondando, por conta própria, essa coisa de briga de galos. Pertenço, por mais bem comportado que me dissimule, eu queria fingir, a um tipo de gente que não confia em informação tirada de boca. Tudo está escondido no mundo e há risos demais. Há risos acanalhados, cínicos, nos cantos das bocas.


Ninguém dá nada de graça a ninguém e o que cai, é chuva. Assim, pela conta de achar, acabei na Rua Alagoas, número mil e poucos, topei a tal Sociedade Esportiva de Londrina, com a placa apresentando, em seus dois extremos dois galos de briga, empertigados, coloridos e valentes. Ou, se quiserem: dois brigadores vermelhos, firmes, uns canibais. Aquilo era uma rinha e de pegada em pegada, eu iria acabar na Favela do Pito Aceso. Na placa da Sociedade Esportiva de Londrina se lia:


“VETAMOS

  1. ingresso de menores;

  2. bebidas alcoólicas no recinto;

  3. ingresso de mulheres suspeitas.”


A Diretoria estava nos lados de Higienópolis, um bairro elegante em que vi as pessoas mais bonitas da cidade. Dei uma chegada no cemitério, que não é rico e divisei de frente, no outro lado, algumas casas de madeira trepadas numa encosta, imundas por fora, sem jeito de favela, que havia mais espaço entre um barraco e outro.


Era o Grilo do Pito Aceso, uma favela que mais parece um quilombo de polacos e mestiços e alguns crioulos. Ali se arrumava, pelos jeitos, caras, desconfiança, dissimulações, uma gente corrida de outro Estado ou da polícia. Ao lado da miséria, ali havia medo, sobressalto, pé atrás. Havia um cercado com uns cavalos e potros de raça, um tordilho. Provavelmente eram cavalos que corriam de penca (pequena pista em linha reta de ligar a que chamavam Cacique). Apareceu um rapaz, Denivaldo, com um balde de ração para os cavalos. Falador, aí duns dezoito anos, magro, levando jeito de nordestino, logo me mostrou sua casa que, apesar de ser madeira, tinha quintal grande e muitos viveiros de aves. Polacos e negrinhos, pelo nosso caminho, duas menininhas negras metidas dentro de uma bacia ernorme tomavam banho numa arrelia barulhenta. Favelados me olhavam, estranhavam o homem de fora chegando ao Grilo. Miséria, assim; mas diferente do Jardim do Sol e das favelas cariocas.


"Um homem bem vestido do meio-fio berra essa coisa estranha profética: Três entre três são as três que eu semeio."

Todo o quintal de casa de madeira é cercado por viveiros. Denivaldo foi me mostrando tudo rapidamente como se lidasse com um entendido em galos de briga. Calculei rapidamente engradados e gaiolas. Havia uns cem galos índios. O rapaz me explicava pronto, rápido, abrindo e fechando gaiolas, puxando as aves para fora numa destreza que me impressionava. Havia um cheiro forte de ração.

— Tem o Índio Corvo, o Japonês, o Carne Seca.


Mostrou-me como exercitava, todas as manhãs. Quinze minutos cada ave. Abrindo as penas, segurando o galo pela traseira, ia fazendo com que se descrevesse rapidamente um oito entre as suas pernas. Depois, mostrou-se a escova com que esfregava o pescoço dos galos, todas as manhãs, para enrijecer a pele. Disse que ia buscar o bico de ouro e a espora postiça de metal. Eu fazia o possível para prender os nervos, mas eram instrumentos horríveis. Aquilo estava remexendo por dentro. Ao mesmo tempo, estava estarrecido diante da inconsciência de Denivaldo, um garoto ainda, entusiasmado com os matadores de raça.

— Venha ver o Índio Argentino.


Colocou-me diante de uma gaiola, onde um galo esguio, coxas fortes e firmes, se mexia nervoso, ininterruptamente. E uns olhos de assassino espetando.

 

O pai apareceu de repente e tentou dissimular, jeitosamente, as informações que o filho me passara e passará. Disse-me que um galo daqueles não valia nada, mal chegaria a uns trezentos cruzeiros por cabeça. Outra coisa, ali não havia mais de trinta daquelas aves. Talvez trinta e quatro. Também a temporada era ruim, eles estavam trocando de penas, não haveria brigas na rinha antes de maio. Aos fundos, depois das gaiolas numerosas, uma rinha. Aquilo, assim vazio, sinistro, me arrepiava. Preferi olhar os pássaros, dentro de uns quatro viveiros enormes — coleirinhos, bigodinhos, canários, pássaros pretos, pintassilgos, muito mais de cem. Mas o pai de Denivaldo tratava de menorizar números e preços, desconfiado, indisfarçadamente abespinhado com o filho que me abrira o jogo. Fingindo-se humilde e inocente.


Desci o Grilo do Pito Aceso, me embarafustei para o centro de Londrina. Já entendia uma coisa que brigava comigo. Nos domingos de rinha, pelas manhãs, frequentadores e apostadores vão à briga de galo como a um aperitivo. Precisam de um pouco de sangue para depois almoçar bem.


Já andei pelos bordéis do brega, cada um é cada um — um capítulo.


Chegando o momento, dou um balanço.

 

Há lances, situações em que detesto a cidade, ainda mais de dia, com o bochorno e o canícula. Falam em 35, 36 graus ao meio-dia. Nada. Sem brisa marinha, é mais quente que o Rio. De mais a mais, falta vegetação, árvores grandes, copadas, e não essa coisa de oitis e arvorezinha. A cidade precisa de águas, piscinas, sei lá. Num desses momentos de aporrinhação, escapes para o Igapó, de carro. Passei o resto da tarde olhando a Lagoa e a visão das águas mesmo barrentas, os meninos brincando na piscina, um horizonte mais aberto e tudo isso me acalmou. Bem, paz. Abandono só consegui sentir no Igapó, até agora.


Estivera ali à noite, no mesmo restaurante San Remo, com pista de dança, música ao vivo, baianas em trânsito pela cidade que sambavam o samba-enredo da Portela como se estivessem dançando samba baiano ou maculelê. Comera o tal prato de Santa Felicidade, uma mistura violenta, só encontrável nos restaurantes de beira de estrada do sul — polenta frita, carnes, saladas, azeitonas, macarrão, frango a passarinho, risoto, verduras cruas, feijão branco — uma mixórdia. À tarde, no entanto, sem comilanças e sem samba falso, o horizonte se abria. O verde e as águas me desaturdiam o calor. Logo fui importunado por um cabelo à escovinha, bermuda e barriga de fora, que resolveu brincar com uma lancha de controle remoto, desfechando um barulho importuno, remitente, amolando todos e quebrando a harmonia. Paguei o refrigerante e me raspei de volta ao Hotel. Ficasse ali e arrumaria uma encrenca desnecessária. As águas do Igapó, apesar de barrentas, não mereciam.


A cidade consegue me entreter e me envolve, muitas vezes. Ali me entrego e é bom. Um exemplo, a linguagem da região, marcada, tocada de rudeza e, por isso mesmo, forte, dando de sobejo, a graça de coisas saborosas. É uma mixórdia, mas interessante, arrumando e desarrumando coisas dos interiores de São Paulo e coisas do Sul.

 

À noite, antes de ir para o brega, sou surpreendido pela percussão do samba ali pelos lados do restaurante Batavo que, após as duas da manhã, as prostitutas e motoristas de táxi chamam de Batá. É um grito de Carnaval da terra. Como sempre, aqui, ali, no Rio, em São Paulo, em Salvador, o negro é a força do samba. Mas aqui ele tira muito o pé do chão e dança mais marcha do que em samba. Mas são samba de escola — Mangueira, Portela, Império Serrano — e há o desejo de conhecer e participar do ritmo. Assim, o samba está vivo, tanto nos crioulos tirando samba na rua, quanto nos rapazes universitários que fazem batucada no Baiano. Vale. Mesmo que atravesse, misture, acho que vale. Aliás, a mistura é total. O Baiano, por exemplo, é japonês. Chama-se Izume.


Mário Fungati


Giro pela zona, pelo aglomerado de casas da Vila Velha com sinais de decadência de um tempo que já foi rico, lotado de lances gloriosos. A Vila Velha, apesar da sordidez, tem um quê família, típico das bocas de meretrício em que as mulheres ali moram, vivem e amam. Não usam aquilo só para fazer a vida. Terminada a hora dos fregueses, lá pelo fim da madrugada, chega o momento de seus machos, os rufiões. Não há a ostensiva perseguição policial como nas grandes cidades em que o grosso da prostitução, em geral, está metido no trottoir e em que as mulheres, apavoradas e oprimidas, vivem com um olho no freguês e outro no carrão da polícia.


Da Vila Velha para a Boate Rosângela e caio num pequeno pedaço de loucura que, a princípio, mal entendo e, de pronto, chego a um juízo definitivo. Se Rosângela surrealista existe, tudo lhe é permitido. Há um conjunto musical reunindo pai, mãe e filha. O pai, me informam, vai avisando que sua filha é virgem e quem bulir com ela, leva bala. Ele canta e toca instrumento de corda; mãe e filha são mulheres claras, de certa forma bonitas, fazem percussão. A mãe, de pé, bate em dois bongôs; a filha, sentada, acompanha na bateria. Todos cantam.


Nesta noite, Rosângela vive um momento grandioso. Vai apresentar o grande êxito internacional da canção Luci Lessa, “cantora que saiu pelo mundo”, mas que pertence, nas origens, ao pequeno mundo de Rosângela. A dona de casa, longo vermelho e uma rosa nos cabelos, figura gorda, sem cintura, é agitada, meio mulata, atiçada e protetora da animação ambiente. As garotas são de nível médio de beleza. Ali, quem aparece mais é uma morena clara, esguia, de branco, cabelos jogados para o alto de certa categoria quando caminha para a pista de dança, fazendo par constante com o homem que atende. Chegou de Curitiba, me dizem. A Rosângela mantém a tradição antiga das casas de prostituição cara de Londrina, o rodízio permanente de mulheres.


Um vento de loucura varre a Rosângela, as raízes de bordel estão vibrando. O sucesso internacional Luci Lessa, prata da casa, abre sua apresentação cantando “Esse cara” de Caetano Veloso. A dona da casa salta de alegria quando Luci Lessa termina Caetano e ergue um brinde com champanhe. Há um viva feérico, geral. Na barriga do braga, madrugada entrando, a cantora tem aquele mundo a seus pés e vive um momento de glória unânime.


Noite e dia, nessas andanças, me aparecia sempre, em lugares variados da cidade, ainda mais na escadaria do Rodeio, à noite, um garoto de cabeça raspada, e no corpinho magro se salientavam as coxas enormes, musculosas, firmes como um jogador de futebol. Baixote, olhos adultos, vivos e assustados, espiando tudo. Pés no chão, 11 anos, virador, uma espécie de trombadinha, usava todos os expedientes. Sebastião, mentiu-me muitas vezes. Quase sempre era catador de papel, levantava às cinco da manhã no barraco do Jardim do Sol, onde morava, e ganhava Cr$ 5,00 diários. Nada. Foi a figura que mais vi nos cantos escondidos e muquifos mais diferentes de Londrina, uma inquietação de galinho de briga, virador, estava em todas — guardando carros, vendendo limões, esperando sobra nos restaurantes, se mexendo como um bicho noturno. Desconfio que dorme na rua. Diz que não sabe ler, só ver dinheiro, mas já o flagrei olhando revistas em quadrinhos, todo animado, curioso, perninhas abertas nos degraus do Rodeio. Imundo, como sempre, pulando nas calças curtas, tem uma peraltice que me encanta e se mexe como um animal elétrico, motivado por uma gorjeta.


A cidade tinha uma estrela. Maior que O Exorcista dos cartazes, havia uma grande estrela, no Fuganti, que se repetia em fachadas de lojas, casas de modas, armazéns e supermercados. Isso me batucou nos olhos e na cabeça, alguns dias. Era Mário Fuganti, um dos irmãos Fuganti e homem poderoso da cidade. Entre outros negócios, era distribuidor do gás engarrafado, que Londrina não tem gás de rua. Busquei uns contatos na TV Coroados e acabei almoçando na casa e com o dono daquele nome que, pela repetição e pela incidência, eu considerava a maior estrela da cidade.


Pediu-me pressa, tinha tempo contado. Naquela tarde, com a esposa, filha, empregados e cachorros, Mário Fuganti partiu para a praia, onde passaria um mês em Camboriú.


Um palacete no bairro de Higienópolis em dois pavimentos e uma gama variada de confortos e recursos, em que contavam duas piscinas, sauna, adega subterrânea com duas mil garrafas de vinho enterradas, coleções de quadros, armas, selos e porcelanas. Gaúcho de Santa Maria, educado em São Paulo. 32 anos de Londrina. Cabelos grisalhos, olhos firmes, claros, sem sotaque da região, sem os vícios paulistas ou paulistanos na fala. Discorre fluentemente sobre pecuária, negócios imobiliários, vida agrícola, inclinações do mercado, economia de Londrina, a sociedade local, uma elite de médicos que vai formando, sem tradição, uma pequena burguesia, a indústria de construções, a cultura branca — soja e trigo. Fazendeiro, advogado, fala bem e gesticulando. Filatelista e numismata. E um flagrante comportado de modéstia.

— Colecionador, não. Sou um juntador.


Conhece todo o Brasil. Em consórcio, participou da compra da maior área de terra já adquirira no Brasil, 450 mil alqueires no Acre (duas vezes o tamanho do município de Londrina) e diz que fará a colonização. Demonstra preocupação com o lado médico, hospitais e problemas de saúde.


Almoçamos no segundo pavimento. Toalha de linho, baixelas finas, um risoto excepcional, bacalhoada como poucas que comi em vida. A mesa enorme, comprida, madeira de lei, jacarandá (tudo é em jacarandá e muito mármore). Enquanto as baixelas passam ou baixam sobre a toalha de linho, Mário Fuganti vai me falando, preocupadamente, os problemas cruciais brasileiros. Surge, entre goles e garfadas, o impasse quase insolúvel do menor abandonado e, recaindo a conversa sobre o Nordeste, acentua com dados a miséria que vi no Piauí.


Esdrúxula, desconcertante, um refúgio de pingentes urbanos ou corridos de algum canto, forasteiros por uma razão ou outra. Esta, a cidade. Talvez, por isso apaixone, do pior tipo de paixão. Porque intriga. Daqui a três meses, Londrina poderá estar diferente de agora.


"No outro dia, vi a figura que mais mexeu comigo nesta cidade. A partir daí, não tinha mais nada a ver."

Na noite quente de sábado, ali por volta das dez horas, zanzando pelo bosque da catedral, fui apanhado por uns amigos, dois rapazes e uma garota; me enturmaram e acabei numa festa de aniversário, num tal Edifício Alvorada, na Avenida São Paulo, 482, apartamento 102. Festa de classe média, mulheres vestiam longos caros, brilhosos e sofisticados, apesar do calor. Havia salgadinhos finos, variados e fartos, e uísque estrangeiro. Procurei uma poltrona ou cadeira, os móveis eram do tipo falso antigo, a personalidade da despersonalidade, o antigo usado pela primeira vez — pretensiosas e graves arcas de jacarandá, consoles, volteios, espelhos redondos e o resto da presepada. Não me sentia em casa. Havia um mal-estar, clima de peso. Não fosse a percussão do samba que os rapazes estudantes faziam, aquilo seria um encontro sem vibração, morninho e bem-comportado, desses em que as pessoas não ousam sequer falar alto. Um festival de caretice classe média, o postiço bom tom da mediocridade de costumes, importados, empostados.


Rápida e zelosa, a mãe de família, dona Lourdes de Moraes, distribui uma ordem ao ouvido de algumas conhecidas de confiança e eu, mais os companheiros, somos convidados a nos retirar. Levantei-me, zonzo caminhei até a porta. Ao cruzá-la e antes de procurar o elevador, vi dona Lourdes que me impunha, de dentro de sua casa e do alto gabarito de suas solenidades.

— O senhor me desculpe, mas não posso aceitar pessoas que não conheço em meu apartamento.


Tenso, catando o que me restava de controle, cortei rente, mordendo palavras:

— A senhora faz muito bem em preservar a dignidade de seu lar. E eu faço questão absoluta de não conhecê-la.


Felizmente, aquela mulher não me respondeu nada.


Um réptil. Lá embaixo, na calçada roza avermelhada da Avenida São Paulo, me senti um réptil. (Se meu pai me via apequenado assim, humilhado assim e me comendo por dentro, provavelmente me mandaria aos gritos, que fosse em frente e reagisse, quebrasse todos os vidros daquelas janelas a pedradas ou…). Eu embaralhava coisas estranhas na cabeça, que começavam a doer. Adoraria estar longe. Nunca em minha vida, nestes anos todos em várias cidades que andei, a trabalho ou a passeio, ricas ou miseráveis, pobres ou grandiosas, nunca havia sido expulso da casa de ninguém.


Precisava de uma compensação. Aí procurei, dentro do cafezal, longe do centro, o prostíbulo mais caro, que me pesava há anos, como uma lenda, mito, coisa faraônica, metida no mato. A Nova Diana, com piscina, quartos maravilhosos, coisas das mil e uma noites em clima luso-afro-tupiniquim. Era isso e ainda mais. Nem a casa de Mônica, em Porto Alegre, nem as casas de Cuiabá, em Mato Grosso, tem o luxo da Nova Diana, plantada no meio do cafezal. A piscina é suntuosa e os quatro quartos do segundo pavimento são de um luxo extravagante. O de espelhos, tão famoso, realmente tem três paredes e o teto de espelhos. Também há a cama oval, superlativamente badalada. Mas o que em mais reparei naquele mundo de dourados e madeira de lei foi em vazio, frívolo, foi em certo retrato na parede, mostrando o casal dono da casa — a polaca Selma e seu marido, quase mulato. Sebastião Alves Aguiar, condecorado como uma comenda em São Paulo: o brega organizado e vitorioso em grandes termos comerciais. Eu sentia estar dentro de um mundo que poderia desaparecer de uma hora para outra. Esta instituição estava em tudo da Nova Diana — um chiquê, uma aristocratice a uma passo da decadência. Um sentimento indefinível, mas solapando. Pela divulgação que fazem, dentro e fora de Londrina, esperava mulheres mais bonitas. Um garçom vestido a rigor desculpou-se — estávamos vivendo um fim de semana fraco. No entanto, tudo melhoraria. Afinal, Selma, a proprietária, é dona também de uma das boates mais caras e ricas da noite de São Paulo, a Versailles, e faz intercâmbio de mulheres, usa aviões, movimenta grandes rodízios.


Aquele luxo e aquela ostentação ficaram brigando comigo até a minha volta à cidade, quando entrei para uma cerveja e para espairecer, num bar da Avenida Tiradentes, número 200, o Estágio 2001.


Minha mornidão agoniada passou, o ranço e o amargo de ter sido expulso de festinha de classe média foi se sumindo, as impressões do luxo mirabolante de Nova Diana foram desmaiando.

A vendedora de flores


O Estágio 2001 gritava como a própria loucura em ritmo acelerado.


Dança na sua decoração um mixórdia colorida, um humor azedo que desnorteia, encabula, leva ao riso e a compenetração. Como que possuído do Diabo, o pintor de paredes Saturno, havia desenhado e pintado as paredes do bar e criara signos zodiacais malditos, em preto e branco. Saturno, em estado de paroxismo, marcara assim os signos do seu Zodíaco pungente.


Carneiro - um carneiro espetado pelo rabo.

Touro - um touro despendurado pelo rabo.

Gêmeos - dois homens sem cabeça.

Câncer - um defunto no caixão.

Leão - uma juba de leão com bobs de mulher.

Virgem - um cadeado sem chave.

Balança - uma mão venal aperta e corrompe um dos pratos da balança.

Escorpião - um escorpião é esmagado por um pé.

Sagitário - homossexualismo bestialógico entre um burro e um centauro.

Capricórnio - um carneiro cornudo e triste; seus cornos formam um caracol.

Aquário - uma mão afogada pedindo socorro sai de dentro de um copo.

Peixes - um homem retira um peixe de seu calção de banho.

 

Aquela composição do pintor de paredes Saturno, aparentemente de mau gosto, me batia com um tom de aviso profético nessa noite. Para uma terra de pioneiros havia um risco e um preço — a vida destrambelhada de forasteiros, picaretas, aventureiros, pungentes, boias-frias, deserdados, prostitutas de todos os escalões, fartura e ganância, violentos contrastes fetogênicos, sociais, humanos, culturais — e como deveria ser o signo zodíaco? Saturno, em sua demência ou tortura mental, não teria captado tudo isso, apocalíptico, debaido do pé roxo e vermelhor desta terra de siena? Afinal, era a luta para a construção de uma cidade — contraditória, terrível, safada, miúda, grandiosa, desnorteante. Sem a menor possibilidade de bom comportamento.


No outro dia, na Avenida Paraná, eu vi a figura que mais mexeu comigo nesta cidade. Uma boia-fria, vermelho de terra, sandálias de borracha nos pés calosos, enxada ao ombro, se mexendo entre o povo passando da Avenida Paraná. Só conseguia enxergar a ele, única figura destacada, na calçada cheia. A enxada nas costas era levada como uma arma, leve e eficiente: era admirável a destreza, a leveza como ele se mexia entre as pessoas, imundo, tostado de sol e também pardacento, esguio e ligeiro. Ele mais deslizava que andava na calçada e ao atravessar a rua, teve um íntimo conhecimento quase familiar, do trânsito — não esbarrava em nada. Nem nas pessoas, nem nos veículos. Era rápido, calmo e, apesar de andrajoso, composto, ereto e inteiriço.


A partir dessa cena, pareceu-me que não tinha mais nada a ver na vida urbana de Londrina. Tinha razão Hélio Duque — ninguém vem ao Norte do Paraná impunemente. A cidade já se mostrara, estava escancarada, e tinha uma marcada definida agora, um jeito de quilombo de brancos, nisseis, polacos, árabens, negros, mestiços, estrangeiros e todos os que viessem.


Então, decido. Vou-me embora deste quilombo, antes que fique de vez.

 
“O João Antônio, ao contrário do Nacib Jabur, do Rui Barbosa, do Hamiltinho e do Myltainho, ele não participava muito das decisões do jornal. O que iria ser a primeira página, por exemplo. O João Antônio tinha vida e luz própria. Ele fazia matérias especiais.” — José Trajano
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