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Boia-fria

Atualizado: 30 de mar. de 2021


"Do boia-fria não se exige nada. Basta chegar com sua enxada e sua sacola para poder ganhar o dia."

Foi o primeiro trabalho profissional da repórter Célia Regina: ela devia procurar uma família de boias-frias, viver como eles, ir trabalhar como eles. Após três dias de enxada, embaixo de sol, fugindo das cobras e com medo, tentando arrancar amendoim bravo com as mãos, Célia desistiu. Não tinha sequer mãos calejadas, muito menos conseguiu suportar o café frio que eles tomavam.


Célia Regina de Souza


É domingo. Estou no Jardim Novo, onde cerca de 400 pessoas são boias-frias, pelo menos no intervalo entre um serviço e outro que consigam na cidade. O importante era arranjar uma casa onde eu pudesse morar por alguns dias. Ademar, um tocador de viola, bom de prosa, me levou na casa de colegas dele para me apresentar.


Só então fui perceber que numa tarde de domingo é difícil encontrar algum boia-fria. A maioria prefere dizer que só vai no caminhão algumas vezes, que amanhã não vai, que está trabalhando em construção. Boia-fria para eles não é profissão, é um "quebra galho”. Só que na manhã seguinte eles estarão no caminhão e continuarão indo para a roça todos os dias.


Ademar explica:

— Eu não vou mais na boia-fria. Desde dezembro estou desempregado, mas não vou não. Inda mais que agora o ponto de ônibus é junto com a parada dos caminhões. Tenho vergonha porque fica todo mundo olhando a gente. Eu mais outros colegas sempre descemos do caminhão lá pela outra rua, que é menos movimentada, pra ninguém chatear a gente.


Embora o Novo Bandeirantes seja um bairro pobre, algumas casinhas de tijolos se multiplicam. As antenas de tevê ameaçam derrubar, com o peso, alguns barracos, carros começam a penetrar nas cercas arrancadas em garagens improvisadas. Alguns carros são de firmas, mas significam uma “melhora de vida”.


Continuamos. Um se mudou, outra não vai no boia-fria, outro porque está com dor:

— Estes dias fui pro hospital de radiopatrulha porque não tinha ambulância. É uma dor que não sei bem. Não estou podendo trabalhar, mas posso dizer que boia-fria é o último recurso. A gente só vai em caso de muita precisão.


Aos poucos vou concluindo que apesar do meu otimismo inicial não vai ser nada fácil virar boia-fria por uns dias. Casa para ficar não consegui.


Como boia-fria eu demoraria muito para chegar até alguma fazenda, e mesmo que conseguisse seria impossível convencer alguém deste meu papel. Não fosse a pele muito branca de pouco sol, as mãos nem um pouco calejadas, o desconhecimento completo de qualquer tipo de serviço na roça, eu facilmente seria engajada em qualquer dos caminhões.


De boia-fria não se exige carteira assinada, nem fidelidade a um só gato, o motorista que os transporta. Basta que o trabalhador chegue num ponto com sua enxada e sacola para que possa ganhar o dia.


Numa situação bem mais cômoda do que viajar na carroceria, rumei na cabina de um caminhão para a Fazenda Piratininga, a 25 km de Londrina, onde quase 40 pessoas estão trabalhando. Todos do Jardim Bandeirantes.


O gato me impediu de conversar com os boias-frias: “Você tem que falar com o administrador da fazenda”. Expliquei: o meu trabalho não tinha nada a ver com a fazenda, com os proprietários ou trabalhadores fixos. Só queria ver o trabalho dos boias-frias e voltar no caminhão junto com eles. Nem o fazendeiro nem os boias-frias podiam impedir isto. Só o gato, porque afinal era no caminhão dele que eu pretendia voltar. Não adiantou: “Tem que falar com o administrador”.

 
“Eu já tinha muito interesse na questão dos boias-frias que estavam surgindo aqui no Norte do Paraná, já tinha feito matérias para a Folha de Londrina e estava pesquisando sobre o assunto. Já tinha dado aula de alfabetização para boias-frias aqui na cidade, então eu conhecia um pouco eles. Me candidatei a ir, mas era claro que eu não era uma boia-fria, então o motorista do caminhão me levou, mas assim, ‘não sei o que você vai fazer aqui’. E eu entrei nessa.” Célia Regina de Souza
 

Esperei o administrador em sua casa. Adivinhando a minha presença, só chegou na altura do meio-dia. Fui alcançá-lo perto do caminhão, em conversa com seu Antônio, o gato.

— Se você quiser, a reportagem pode fazer, mas amanhã cedo você me assina um papel se comprometendo em não citar meu nome, da fazenda, ou meu, o dos empregados, o do seu Antônio e de qualquer empregado dele. Qualquer coisa eu processo você e o jornal.


Com esta recepção, fiquei conhecendo Amadeu Mortari, neto do proprietário da Fazenda Mortari. Depois dessa sessão, Amadeu declarou-se a favor do governo e disse achar tudo muito bom, sem querer confusão para o lado dele.

— Você primeiro vai conhecer a fazenda e meus empregados, almoça na minha casa, depois te mostro tudo. Aqui as coisas são muito bem organizadas.


Não hesitei em respeitosamente seguir sua autoridade. Calei a boca, concordei com tudo e pensei: cumpro o programa ou vou procurar outra fazenda? Cheguei à conclusão que não demoraria muito para ganhar, pelo menos, a simpatia dele.


Depois de um almoço carrancudo saímos com uma Kombi para visitar a fazenda. A simpatia veio logo, acompanhada de um maço de cigarro Epson. Visitamos a casa de um empregado da fazenda, e a liberdade começou: uma mocinha da fazenda ia me mostrar o que eu quisesse.


Eram 15 horas e eu já tinha ideia da imensidão dos 860 alqueires, com 70 mil pés de café, mais de 50 alqueires de soja, pastos, colônias, cachoeiras, mangueiras, pomar, escola e 15 famílias com um total de 80 trabalhadores registrados; cerca de metade eram menores de idade. Todos trabalhando 8 horas por dia e recebendo 1,63 por hora (os maiores) e 80 centavos (os menores).

“Os trabalhadores chegam. Sobem no caminhão e eu começo a me sentir pior que um peixe fora d’água.”


Seis horas, sirene para levantar. Seis e meia marcar ponto no escritório, 10 horas almoço, 11 retorno, 13h30 café, 14 retorno, 17 horas fim do dia.

— Isto aqui é uma indústria. Todos os trabalhadores recebem férias, 13º, hora extra, mas pagam 70 cruzeiros de aluguel e 10 por bico de luz – diz Amadeu.


Para ele, os boias-frias preferem o conforto da cidade. Encerro o passeio e me dirijo para a entrada da fazenda, onde está o caminhão. Passo por um grupo de trabalhadores, converso com eles. Pergunto o que acham dos boias-frias.

— São gente igual a nós, trabalham como nós. Só que eu acho que eles sofrem muito mais.


É um rapaz de uns 18 anos, muito sorridente, contando:

— Aqui no sítio nós estamos vivendo como na cidade. Tudo o que nós compramos é de lá. Não temos plantação. Nosso arroz e feijão é comprado na cidade, pagamos aluguel e luz. Na cidade é assim também, só que tem mais recurso. Eu queria ir lá, mas se for para não arrumar emprego e ter que ser boia-fria, eu não vou.


Dezesseis horas. Os boias-frias estão divididos no cafezal. Cada um é um número. Este número corresponde a uma rua de café que eles estão carpindo. Cada número carpirá ao final uns 50 pés de café para mais. Cada pé de café são 25 centavos.

— Tem uns que vão tirar até 50 contos hoje – diz o gato, seu Antônio.

 
“O café do Paraná era o melhor do Brasil, o melhor do mundo, era considerado um café colombiano. Não era brincadeira. A riqueza gerada pelo Paraná era incrível. No IBC [Instituto Brasileiro do Café] em Londrina, tinham galpões enormes feitos de mármore. Era muito dinheiro. Gerou uma cidade chamada Londrina e várias outras, Paranavaí, Jandaia, Maringá… Todo esse cinturão do Norte do Paraná era café, não tinha outra coisa. Eram quilômetros, quilômetros e quilômetros floridos e o cheiro do cafezal em flor é uma coisa marcante, entra em você, entra na alma. Aquele cheiro você não esquece nunca mais. Não é o cheiro do café coado, que já é gostoso demais, o cheiro do cafezal em flor, todo florido de branco, é lindo e é cheiroso.” Nilson Monteiro
 

Todos os dias ele sai de sua casa às 6 horas. Da rua Maringá vai até o Novo Bandeirantes, onde espera o caminhão ser lotado por umas 40 pessoas: “Não estou trazendo mais porque senão vem muita molecada”. Boia-fria, para ele, é consequência da queda do preço do café e dos inúmeros gastos que as fazendas têm com adubos, inseticidas e tanta coisa mais. Ele ganha do fazendeiro conforme o número de boias-frias transportados e prefere não dizer quanto. Segundo alguns são 3 cruzeiros por trabalhador.

 

Os trabalhadores vão voltando, às 17 horas. Um senhor e seu filho carpiram pouco mais de 100 pés. Vão faturar 50 contos, os dois juntos. Sobem no caminhão e começo a me sentir pior que um peixe fora d’água. O ditado é velho, mas é bem o que pode se sentir alguém de classe média bem nutrida. Embora as minhas roupas fossem as mais simples possíveis, meus pés enlameados, o rosto sujo, para ele eu era a própria mocinha da cidade que vai procurar diversão no sítio.


Uma das primeiras a chegar é uma mulher aparentando pouco mais de 30 anos, descontando o envelhecimento precoce que o trabalho na roça, de sol a sol, proporciona. Ela trabalha com o filho. O marido viajou para o Mato Grosso, foi tentar a sorte como peão.


Puxo conversa e, com muito jeito, entro no assunto:

— Sabe, eu preciso fazer uma pesquisa para o jornal, mas moro lá na cidade, não dá tempo de pegar o caminhão. Será que seria difícil conseguir a casa de alguém para dormir?


Ela diz que é fácil, mas me corta a iniciativa:

— Não ofereço a minha porque meu marido está viajando. Sem conversar com ele, não dá.


Me surpreendo com a resposta e chego a achá-la engraçada. Enquanto um bando de feministas na cidade fica arrotando liberalismos, milhões de brasileiras passam fome e trabalham para sobreviver, carpindo como homem, viajando como homem, sofrendo como homem, mas respeitando o marido e ganhando, quando o trabalho é por dia, 5 cruzeiros a menos que os homens.


Outra boia-fria sobre no caminhão de botinão, calça comprida, vestido sobre a calça, blusa de manga comprida sobre o vestido. Com a cara carrancuda tira o chapéu e eu vejo uma mulher bonita, dentro dos padrões mais femininos: rendão envolvendo os cabelos e brincos de argolas bem grandes. Penso então que este feminismo, o respeito ao marido, não é o maior mal que elas sofrem. No boia-fria conta muito pouco ser homem ou mulher. Quando muito, 5 cruzeiros.


O marido da mulher de brincos não desfaz a carranca. E é por minha causa. Na minha frente, mas sem olhar para o meu lado, vai dizendo:

— O jornal devia ver as malandragens que acontecem na cidade. Lá sim, tem crime e muita notícia ruim. Não devia nem se preocupar com nós que estamos aqui trabalhando. Nós não estamos roubando nem fazendo nada demais pra sair no jornal.


E uma ladainha de agressividade vai fechando o caminho novamente. Saio em minha defesa. Digo que só quero conhecer o serviço, saber como se trabalha na roça, comento que o povo da cidade não dá valor ao trabalhador do campo porque desconhece o quanto a vida dele é difícil. Pouco adiantaram os argumentos. Naquele momento eu era a própria maioria silenciosa, que consente, cala e que só abre a boca para falar besteira.


Calei e aguentei o desabado com uma vontade imensa de me justificar como jornalista, me justificar como classe média e até mesmo pedir desculpas por ser da cidade. Não ganhar a simpatia de um administrador é possível; mas você sentir 40 pessoas ao teu redor te concentrando com o olhar pode motivar, no mínimo, um sentimento de culpa.


Apelei para a sensibilidade feminina, torcendo para que ela realmente existisse. Falei para uma boia-fria que se ajeitava, com o filho, em cima do caminhão:

— Sabe que tenho um retrato da senhora?


Ela se mostrou surpresa e eu me senti feliz, porque era um início de conversa. Contei que foi um retrato tirado no ano passado, quando eu pesquisava sobre o acidente com um caminhão de boia-fria. O filho dela pediu para que eu levasse o retrato, perguntou se não tinha dele também, pediu uma "segunda" do meu cigarro e ficou todo feliz nos seus onze anos de vida e dois de boia-fria. O nome da mãe é Lurdes. Tem 37 anos e quatro filhos. Peço que me deixe ajudá-los no dia seguinte: E eles estão carpindo café. Um trabalho pesado. Lurdes me diz: “Aposto que num guenta três pé de café”. Digo que vou fazer força e ela se prontifica em me emprestar a enxada. Arrumei, enfim, uma amiga.


O caminhão começou a andar. Fico abalada de ver rostos tão cansados de tantos dias de trabalho. Todos espalhados na carroçaria. No meio, umas tábuas servem de banco, onde cabem oito pessoas. Perto da cabina vão as mulheres, crianças e velhos. Para a ponta do caminhão ficam os mais jovens sorrindo com os dentes quebrados, pretos de cáries.


Do meu lado ouço um sotaque estranho. Meu colega de viagem é um homem claro, de olhos claros. Nos outros trabalhadores a dor parece ter nascido no rosto, está na boca, nos olhos, nariz, mãos, amadurecidas.


Meu vizinho de viagem não. Ele tem rugas de tanto fechar os olhos contra o vento, contra o sol, contra a dureza da vida. Os outros já se acostumaram e veem tudo de olhos bem abertos. Faço uma pergunta para errar:

— O senhor é italiano?

— Não. Sou português.


Me espanto de verdade. É o primeiro estrangeiro boia fria que conheço. Desde 1967 está no Brasil. Veio para ficar com um filho. Diz que vai no boia-fria porque gosta. Não acredito nem um pouco que as coisas sejam tão fáceis e pergunto se ele tem vontade de voltar para Portugal. A surpresa maior veio com a resposta:

— Gostaria muito. Inda mais agora que dizer que Portugal está muito bom. Botaram aquele malandro do Marcelo Caetano* pra correr, né? O safado está no Rio de Janeiro.


Num caminhão de boias-frias analfabetos em sua maioria, ou com “pouca leitura”, como eles dizem, era o diálogo mais estranho que poderia acontecer. E o português sorria com os gritos! “Ó, ralho”, dos outros boias-frias brincando com ele.


Começa o asfalto. São 20 km até Londrina no caminhão de Irerê. Apesar do sol, do dia quente, o vento obriga todo mundo a cobrir ouvidos e braços. Este vento dá uma dor nos ouvidos – comentam, e pelo jeito o comentário é feito todo dia. Gritam e riem bastante quando passa outro caminhão de boia-fria:

— Aí, seus boia!

— Ê, boia-quente.

— Ê, boia azeda.


Há certa satisfação e ironia nas saudações. Afinal, eles que volta e meia são ofendidos no caminhão, veem que não são os únicos. Existem mais. Talvez 400 mil boias-frias na região, conforme se ouve falar. Eles não sabem quantos. Não têm noção de números tão amplos. Não contam, mas veem que não são só eles e que não é em Londrina que os boias-frias existem.

 
“Londrina sempre foi uma cidade libertária, palco de lutas sociais muito grandes, de sindicalismo rural forte, porque o campo dependia de uma mão de obra enorme. O jornal colocou como personagem da sua linha editorial gente simples lá da região, de Londrina e do Norte do Paraná, como personagens centrais daquele jornal.” Nilson Monteiro
 

Chegamos ao Novo Bandeirantes. Meu dia de boia-fria acaba ali. Os trabalhadores se dirigem para suas casas carregando feixes de lenha e conversando. Vou para o ponto de ônibus.


Um caminhão de boia fria quebra constantemente, na estrada ou na cidade. Cada vez que quebra na estrada, eles dormem lá mesmo, com nosso rosto. É tempo de dias quentes, mas à manhã parece inverno. Cortamos neblina na estrada, e meu nariz era um dos poucos a ficar vermelho.


Num posto de gasolina, perto da estrada para Irerê, o caminhão para e Lurdes aproveita para me perguntar por que o governo manda sempre gente para falar com os boias-frias. Compreendo: ela pensa que os jornais são do Estado e os jornalistas, funcionários do governo.


Estamos chegando à fazenda, pouco mais de 7 horas. O caminhão nos deixa no cafezal. Uma turma pega o serviço ali por empreita, outros preferem trabalhar na plantação de soja, ganhando por dia. Os homens ganham 20 cruzeiros, as mulheres e as crianças 12 ou 8, dependendo da idade. Alguns velhos, o português, crianças e algumas mulheres e homens de idade média se dirigem para a soja. Dona Isabel, uma velhinha que diz estar chegando aos 50, ri gostosa e dolorosamente ao dizer:

— Ê, lá vai nós pras cobras!

O comentário não me agrada.

— Todo dia a gente mata umas. Tem cascavel de 5 anos e uma de 10, que foram mortas nestes dias.

 

Não é preciso ir muito longe. No carreador já me avisam para andar com cuidado. Andamos um quilômetro mais ou menos. O mato no meio da estradinha vai até a altura da coxa e está todo molhado de orvalho. Nossas calças ficam completamente molhadas. Muitos usam conga e no tecido a água acumula. Começamos o dia à espera do sol para secar nossas roupas. Fico pensando como será no inverno, quando o sol não vem.

“Com a cara carrancuda, tira o chapéu e vejo uma mulher bonita, dentro dos padrões mais femininos.”


Chegamos ao local de trabalho quase às 8. Não tenho enxada e dona Lurdes não vai poder me emprestar a dela, pois já está com o filho mais novo.


O fiscal da fazenda nos espera e, antes que diga alguma coisa, dona Isabel já protesta:

— Se tiver achando que nós demoramos muito, vai reclamar com o gato, que fica parando por aí.


Nosso trabalho começa. Vamos carpir soja. Tirar o amendoim bravo do meio da soja. Acompanhar com a enxada as curvas da plantação.

 

Observo o serviço e tomo uma enxada emprestada. Aos poucos vou distinguindo a soja do mato, mas na hora de roçar vai tudo junto. Vejo Décio, o menino de 9 anos, avançar em sua rua junto com a mãe e me sinto ridícula tentando acertar o pé de amendoim. Como estou estragando muito a plantação e despertando curiosidade do fiscal, vou conversar com ele.


Muito educado, o fiscal fica proseando com os boias-frias. Todos querem saber por que eu, uma moça “estabilizada” (culta), estou querendo pegar na enxada. Arrumo uma mentira honesta e convincente:

— Eu também sou professora e dou aula para muitos boias-frias. Ensino para eles o que sei, mas preciso aprender também o que eles fazem.

 

Na verdade, é impossível ficar de braços cruzados só conversando, embora eles digam: “Olha, ninguém repara de você ficar à toa”. Como todos sabiam que eu não ia ganhar o dia, porque o gato não levou a sério a minha disposição, ficava parecendo muito luxo eu trabalhar como “distração”. O trabalho é relativamente fácil. Não é preciso ter força, mas sim uma grande resistência e costume para as costas não doerem de tanto ficarem inclinadas.


Dona Lurdes e dona Maria (uma alagoana de 13 filhos, “Deus me levou 2 fiquei só com 11”) são muito boas na enxada e por isso recebem 20 cruzeiros por dia, como os homens. O trabalho delas é mesclado por bate papos sobre filhos, a casa, o serviço. Duas donas de casa varrendo o quintal e conversando como boas vizinhas.


Durante todo o dia as ruas de soja serão percorridas de ponta a ponta por vários trabalhadores. A roça é uma indústria, onde as pessoas repetirão alguns gestos até que o fiscal grite: “Deu a hora”. E na sede da fazenda uma sirene anuncia o fim do expediente.


No boia-fria os trabalhadores se aproximam muito mais uns dos outros. Estão unidos na hora de pegar o caminhão, viajam juntos, conversam, caminham juntos pelo carreador e em serviço como o da soja a proximidade é maior. Existe uma camaradagem que vai se firmando. Quase todos são oriundos do mesmo bairro, mas não se visitam, segundo Lurdes, para evitar “conversa boba de vizinhança”, mas se respeitam mutuamente como colegas de serviço.

 

Os homens e mulheres se tratam de senhor e dona. Ninguém é chamado pelo nome apenas (a não ser os mais jovens). Trocam considerações a respeito de tudo e muitas vezes se organizam:

— Quando a gente chega na fazenda o serviço é difícil e barato, falamos com o gato pra ele ver com o fazendeiro e aumentar o preço. Se não aumentam tem muitos que voltam a pé pra cidade queimando sola, mas eu mesma já vi aumentar várias vezes. Tem que ver se todos os colegas estão achando o preço ruim e pedir pagamento maior com todos juntos.


E Lurdes vai dizendo:

— Nós trabalhamos como em uma firma, né? Só que não temos carteira assinada, nem auxílio em caso de doença. O pessoal da roça também paga aluguel, compra comida na cidade, e faz o mesmo serviço que a gente, mas tem que ganhar o que o patrão quer pagar. Eles também comem a boia-fria que trazem das colônias.


Lurdes conversa bastante.

— Esse povo da fazenda é gozado, parece que tem vergonha da gente!


10 horas. Vamos comer boia-fria. Arroz, feijão e abobrinha é o prato principal. Cada caldeirão, a comida é de duas ou três pessoas. Todos sentam na beira da estradinha da fazenda. Temos uma hora de almoço e nenhum galho dando sombra. Cada boia-fria leva um pedaço grosso de plástico e com ele cobre a cabeça do sol. Na roça ou no caminhão é só encolher todo o corpo, encostá-lo ao chão e o plástico protege da chuva também.


Sento com dona Isabel, a velinha de quase 50 anos, ela procura proteger minha cabeça com um plástico, antiga toalha de mesa, enquanto diz:

— Se esconde do sol, filha, você tem a pele limpinha e vai acabar toda queimada.

 
“Imagina a ciumeira dos meninos quando deram essa pauta para a Celinha, viver com os boias-frias. Era muito louco. Como mulher, nessas experiências a gente é meio desbravadora – embora tenham muitas desbravadoras lá para trás, sempre causa estranheza.”Elvira Alegre
 

Dona Isabel trabalha o dia todo no sol, mas não tira uma japona de lã do velho corpo. Todas as mulheres trabalham de mangas compridas, lenço na cabeça e chapéu, para a pele não queimar muito.


O marido de dona Isabel me oferece um pepino sem sal, sem nada. Como já tinha recusado um pouco do almoço deles, resolvi aceitar o pepino, embora seja uma das coisas que mais detesto. O pepino me dava náusea e eu comia pão para tirar o gosto, quando me ofereceram café. Aceitei, mas só fui sentir que era café frio quando levei a garrafa à boca. Talvez por condicionamento, pensei que era quente, de garrafa térmica. Meu estômago era um rebuliço. Dona Isabel e seu marido conversavam:

— Isabel, preciso lembrar de trazer o fumo pro administrador, que o moço sofre de bronquite.


Dona Isabel protesta, dizendo que “rico cura bronquite é com remédio”:

— Deixa o fumo pros pobres que não podem ir ao médico. Ele joga leite fora, mas não te dá um litro e você inda vai se preocupar com ele?


Ela só tem dó de gente pobre, de vida dura.


Alguns terminam de almoçar, vão encostando o corpo na plantação de soja e enfiando a cabeça debaixo de algumas folhinhas para fugir do sol. Os empregados da fazenda também estão almoçando. Suas mulheres e irmãs vieram trazer o almoço e ficam ao redor conversando. Reclamam que fazer compras em Londrina é muito difícil, porque só a passagem do ônibus está custando 4 contos.


Existe um pequeno entrosamento entre os boias-frias e pessoal do sítio: uns trazem pente, fumo; levam cabo de enxada, galinha. Mantimento não se pode trocar ou negociar, porque aos trabalhadores fixos não é permitido ter plantação na fazenda. Só podem criar galinha e uns porcos dentro de cercados. O gato chega com o caminhão e todos sorriem satisfeitos, porque embaixo dele pode se conseguir uma sombra. Não dura muito. Logo são 11 horas. Fim do descanso.


O trabalho começa a ficar mais difícil. O amendoim bravo, uma planta leitosa, começa a ser suplantado pela marmelada, um mato grosso que toma conta das ruas de soja. O pessoal sorri dizendo:

— É, sobremesa de pobre é marmelada pra carpir! Ô, vai buscar o queijo pra gente comer com a marmelada!


Tudo vai muito bem, embora o sol comece a arder nas minhas costas. Inexperiente, vesti uma blusa de mangas cavadas e apenas lenço na cabeça. Sinto por que se usa o lenço e o chapéu: minha cabeça começa a fumegar. Nenhuma sombra. De repente um barulhinho estranho. Me apavoro e me ouriço feito um bicho do mato. Prefiro não dar vexame. Passarinho também faz barulho. Mas na soja? Mantenho a calma, mas um menino de 16 anos ao meu lado diz logo:

— Você ouviu? É cobra!


Saio rapidamente à procura do carreador pensando como eles podem ter tanta calma diante de um bichão tão asqueroso e traiçoeiro. Por alguns minutos perco a coragem. Mas entendo por que eles não se apavoram com as cobras: elas estão todos os dias no caminho e eles precisam trabalhar todos os dias. Não adianta se preocupar. A mesma coisa acontece comigo. Ou volto para o meio da soja, ou só vou conversar com este pessoal no fim do dia.


Abandono o pedaço onde ouvi ruído e volto para o serviço mais adiante. Vou carpindo com rapidez satisfatória e volta e meia um trabalhador vem me auxiliar, principalmente os rapazes da fazenda, que adoram uma conversa. As mulheres já param com maior frequência, para acender um cigarrinho feito de papel de pão e fumo de corda. Eu, com um maço de Arizona, vou oferecendo, mas todos relutam em aceitar: “Se acabar o cigarro, você só vai poder comprar outro em Londrina”. Acabam sorrindo com simpatia e aceitando.


O fiscal chama todos nós. O trabalho agora vai ser em outro campo de soja. Enxada nas costas, sacolas nas mãos, todos caminham pelo carreador. A molecada vai cantando.

— Meu patrão brigou comigo, me chamou de boia-fria.


Mas só sabem este pedacinho. Dona Maria, a alagoana, conta o caso de uma moça da fazenda que foi reclamar para o fazendeiro que um boia-fria a ofendeu:

— Seu Amadeuzinho disse que nós era tudo uma cambada. Vê se pode! Depois ele chamou a moça e pediu pra ela identificar o culpado. Ela não reconheceu nenhum boia-fria. Daí o fazendeiro perguntou o que tinham feito pra ela. Ela disse que chamaram ela de linda e jogaram um beijo! Até o fazendeiro achou ruim de tanto caso por tão pouco.


Durante o trabalho, o bode expiatório chama-se bombeiro. São dois: dois meninos encarregados de abastecer os trabalhadores de água, apanham em uma mina. Todos aproveitam para exercer autoridade sobre os bombeiros. Seja em brincadeira ou a sério: exigem água, maior rapidez, melhor atendimento. Uma menina de fazenda briga:

— Você é bombeiro, tá ganhando o dia. Tem direito de me trazer a água!

— É, mas não é meu direito entregar água de mão em mão!


O fiscal pede atenção no trabalho e avisa sobre as “rajadas”, cobras. Não me animo a entrar. Alguns começam a fazer gozações para o meu lado.

— Puxa, ouvi dizer que você carpiu quase uma rua de soja.


Outros vão balançando a cabeça e sorrindo com intimidade maior. Insistem para que eu saia do sol. Às 13h30, parada para o café. Arrumamos uma sombra e sentamos. Lurdes pega uma xícara na sacola, a garrafa de café e uns pães meio duros. Conta-me que veio de Iporã, onde trabalhava na roça. Há dois anos é boia-fria. Desde que chegou em Novo Bandeirantes. Tinham uma terrinha, mas foram fazendo dívidas e tiveram que vendê-la. O marido está trabalhando na construção, mas só com o salário de um não se vive.

— Com os dois meninos me ajudando, eu tiro mais de boia-fria do que de doméstica. Depois, trabalhar de doméstica não me dá. Patroa só enxerga a gente no portão de casa pra dentro, mesmo assim, só pra dar serviço. Se acontece um acidente, uma doença, elas desconhecem a gente.


Lurdes gosta de trabalhar na roça.

— Tô acostumada, toda a minha vida. Mas acho que deviam melhorar muita coisa. Os boias-frias deviam ser registrados com cada gato e ter um caminhão certo. Devia ter um pagamento melhor por tempo de serviço, médico pra atender e coisa assim. Ou então, a fazenda manda o caminhão buscar a gente e o fazendeiro fazer o registro na carteira. Desse jeito não tinha mais gato. Com ele a gente sempre está ganhando menos. Se é 18 a gente recebe 15; 3 fica pra ele.


Há diferença de pensamento entre Lurdes e outros boias-frias. Para ela, o boia-fria é necessário para a fazenda e o gato não passa de um intermediário, enquanto alguns agradecem a Deus por existir o gato que lhes dê emprego.


Lurdes vira-se para dona Maria e comenta:

— Me disseram que saiu no jornal que o Novo Bandeirante é o bairro de Londrina onde tem mais mulher sem-vergonha.


Indignadas, as duas chegam à conclusão de que deve ser mentira. Não sairia uma coisa assim no jornal, nem que fosse verdade. Dona Maria diz, preocupada:

— É, mas o carnaval está aí. É tanta moça que se perde nessas festaiada.


As duas acabam chegando a outro assunto que é como elas dizem “o maior sem-vergonhismo"; o homossexualismo. Dona Maria viu um rapaz na rua todo vestido de mulher, “é uma vergonha”.

“Na minha boca ficou mais do que gosto do café, um sabor de quem não conseguiu ser um boia-fria.”


A soja agora desaparece do meio de uma imensidão de amendoim bravo. A cada enxada, junto com o amendoim vai a soja. Já não consigo carpir sem estragar a plantação. Prefiro ir arrancando o amendoim-bravo com a mão. Cada galho puxado deixa um leite grudento, que chega a queimar. O administrador repara muita soja se perdendo e avisa:

— Amanhã vai ser tudo arrancado com as mãos.


Minha cabeça começa a doer. Sinto fome, tontura e uma mistura de coisas ruins. Paro de trabalhar e me dirijo ao administrador Amadeu. Ele não tocou mais no assunto do documento que eu deveria assinar para poder fazer a matéria. Ele me diz:

— Está vendo? Isto aqui é uma indústria, só dá dor de cabeça.


Conta que abandonou a faculdade de Direito no 2º ano e fala de música popular brasileira. Daqui um ano – ele diz – não precisará mais de boia-fria, porque vai entregar o café de “porcentagem” novamente, como seu avô fazia anos atrás; a soja, onde já utiliza a mecanização, ele vai deixar para os assalariados da fazenda cuidar. Amadeu não gosta do serviço dos boias-frias.

— Eles matam no serviço!


Fico pensando se Amadeu conseguirá retroceder no tempo, acabar com os boias-frias (quase todos ex-porcenteiros) e voltar com a porcentagem, principalmente nessa fazenda, uma das primeiras e poucas a aplicar quase regularmente o Estatuto do Trabalhador Rural, pagando 13º, férias e com os empregados registrados.


Toca a sirene: 17 horas. Enxada nas costas, sacolas nas mãos, dor de cabeça e tonturas, vou caminhando apressadamente para arrumar uma sombra e esfriar a cabeça. Os boias-frias vêm conversando, bem mais animados que eu. No caminhão se reúnem os que vêm da soja e os que chegam do café. Trocam informações sobre o serviço e contam como foi o dia. Um trabalhador de café exibe o couro malhado de uma cascavel morta. Seu colega está levando a carne para comer e ele, o couro para fazer um cinto. Ameaça a chover. Todos torcem para a chuva esperar mais um pouco. O caminhão parte, os trabalhadores da fazenda se despedem com os gritos e acenos. Me sinto mais baqueada do que aquelas 40 pessoas que trabalharam com afinco o dia todo. Me dá uma alegria ver como alguns se preocupam comigo. Nas minhas costas, a tábua da carroçaria se balança toda hora e sentados nela estão homens, mulheres e crianças.


Descemos do caminhão em Novo Bandeirantes e vou com Lurdes e os seus filhos até sua casa. Em uma baixada cheia de mato, que lembra a marmelada da roça, me surpreendendo com dois cômodos de tijolos onde o chão brilha de limpeza. Ali moram seis pessoas. Na parede, o retrato das filhas, pelo qual Lurdes pagou 50 contos.

— Queria muito ter a feição deles enquanto criança.


Apesar da limpeza da casa, de fogão a gás e rádio a pilha, o maior luxo é o retrato de 50 contos. Os dois filhos mais velhos já têm até o terceiro primário, a menina de 13 anos precisa estudar mais, para depois arrumar emprego.

— De doméstica eu não quero, prefiro que ela consiga um emprego em firma. Acho que o mundo caminha pra um tempo difícil, quando não mais ter este serviço de carpir. Só vai ter máquina, e pra lidar com as máquinas é preciso pelo menos um pouco de leitura.


Ela diz que tudo podia ser melhor:

— Se os fazendeiros falassem: “Olha, povo, pode plantar de tudo!” Daí sim, a gente garantia o sustento. Mas os fazendeiros são muito ruins, né? Eles não fazem isto... então, por isso eu acho que devia ponhar uma lei mandando os fazendeiros que não deixassem plantar tudo, dividir a terra deles com os outros. Pegava uma família, tem dez pessoas? Toma 4 alqueires de terra. Tem 8? Toma 3 alqueires de terra.


No dia seguinte, não vou mais no boia-fria. Evito tomar sol porque meus braços e o resto ardem com as queimaduras na véspera. A dor de cabeça não incomoda mais. Vou fazer uma última visita a Lurdes. Ela está voltando do trabalho. Suas mãos estão ardendo e grudentas. Arrancou amendoim bravo e leitoso o dia todo.


Carrego a sacola com a marmita e garrafa de café de Lurdes. Em suas mãos mais vazias agora, um pedaço de pau comprido e esverdeado que bem raspado com facão será um novo cabo de enxada.


Lurdes pergunta se não vou no boia-fria. Digo que não e ela conclui em tom de pergunta: “De certo vai, agora em outras fazendas, né?” Respondo que sim, mas sei que meu trabalho termina ali. Em outras fazendas, em outros bairros ou cidades a situação do boia-fria é a mesma. Os nomes variam conforme a região: Os birolos, os pilões e até o antigo pau de arara, vão tomar amanhã o mesmo vento e comer da mesma boia-fria por um dia de 20 cruzeiros, bebendo todos a mesma água: a insegurança.


A sacola, o cabo de enxada e meus poucos dias com os outros boias-frias ficam depositados na casa de Lurdes. Na minha boca ficou mais do que gosto do café que não consegui beber: um sabor de quem não conseguiu ser um boia-fria como tantos que existem.


Apesar da minha vontade e de toda leitura sobre campo e boias-frias, meu trabalho e minha vida não engrossaram minhas mãos para que elas suportem o peso da enxada.

 
“Depois de três dias trabalhando como boia-fria, fui tentando descobrir por onde que eu ‘pegava’ a minha matéria. Tive uma insolação, redigi o texto, entreguei para o Myltainho [Mylton Severiano da Silva] e falei: ‘Olha, isso aqui é um relatão, vê aí o que você quer e como a gente pode editar’. Ele disse: ‘Não. Está ótima, essa é a matéria’. A matéria saiu e depois eles me convidaram para ser repórter na editoria de Economia.” Célia Regina de Souza
 

* Marcello Caetano foi o último Presidente do Conselho de Ministros de Portugal durante o salazarismo. Exilou-se no Rio de Janeiro em 1974, com a Revolução dos Cravos, onde viveu até sua morte, em 1980.

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